Por João Calvino
Mas o Espírito expressamente diz.
O apóstolo tem transmitido a Timóteo conselhos criteriosos sobre
muitos temas, e agora mostra por que tal cuidado era necessário, visto
ser sensato tomar medidas contra um perigo que o Espírito Santo declara
estar chegando, a saber, que viriam falsos mestres oferecendo suas
próprias invenções fúteis como se as mesmas fossem o ensino da fé, e
que, ao transformar a santidade em observâncias externas, obscureceriam
aquele culto espiritual devido a Deus, o qual é o único legítimo. E
nesse ponto tem-se realmente travado constante batalha entre os servos
de Deus e os homens tais como os descritos por Paulo aqui. Pois, visto
que os homens são naturalmente inclinados à hipocrisia,
Satanás
facilmente os persuade, dizendo que Deus pode ser corretamente
cultuado através de cerimônias, disciplinas e coisas externas.
Realmente, sem necessidade de mestre, quase todos têm esta convicção
profundamente arraigada em seus corações. Afinal, a astúcia de Satanás é
adicionada para completar o erro, e o resultado é que em todas as
épocas tem existido impostores que recomendam o falso culto, através do
qual a verdadeira piedade é levada à ruína. Afinal, essa praga traz
outra em seu comboio, pela qual usa a compulsão para sobrecarregar os
homens em relação a questões que são indiferentes. Pois o mundo
facilmente permite a proibição de coisas que Deus tem declarado
lícitas, a fim de que seja permitido transgredir as leis de Deus
impunemente. Aqui, pois, Paulo adverte não só a igreja de Efeso através
de Timóteo, mas também a todas as igrejas, em todos os lugares, contra
os falsos mestres que, introduzindo o falso culto e emaranhando as
consciências com novas leis, adulteram o verdadeiro culto divino e
corrompem a genuína doutrina da fé. Eis o propósito real desta passagem,
o qual devemos especialmente conservar em nossas mentes.
Além
do mais, para que todos recebessem o que ele está para dizer, com
atenção mais atilada, primeiramente declara que essa é uma profecia do
Espírito Santo, inequívoca e perfeitamente luminosa. Naturalmente, não
há razão para se duvidar que tudo quanto o apóstolo diz é também
inspirado pelo Espírito; mas ainda que devamos ouvi-lo sempre como o
próprio instrumento de Cristo, todavia aqui, num assunto de imensa
relevância, ele particularmente desejava declarar com explicitude que
nada prescreveu que não fosse pela operação do Espírito de profecia.
Por conseguinte, mediante esta solene certeza, ele nos recomenda esta
profecia; e não satisfeito ainda, acrescenta que ela é clara e isenta de
toda e qualquer ambigüidade.
Nos últimos tempos.
Naquele tempo, ninguém poderia esperar que, com a meridiana luz do
evangelho, fosse possível que alguém caísse. Mas isso é precisamente o
que Pedro diz [2 Pe 3.3], ou seja, que assim como falsos mestres uma
vez perturbaram o povo de Israel, também perturbarão sempre a Igreja de
Cristo. E como se Paulo dissesse: 'Agora o ensino do evangelho
floresce, mas não passará muito tempo sem que Satanás tente sufocar a
boa semente com as ervas daninhas." Tal advertência era útil no próprio
tempo de Paulo, para que os pastores e os demais prestassem cuidadosa
atenção à sã doutrina se guardassem de ser enganados. Ela não nos é
menos útil hoje quando vemos tudo acontecer segundo a expressa profecia
do Espírito. Notemos especialmente a grande solicitude de Deus por sua
Igreja, prevenindo-a em tempo hábil sobre os perigos que se aproximam.
Satanás possui muitos artifícios pelos quais nos conduz ao erro e nos
assalta com estratagemas extraordinários; Deus, porém, nos fornece uma
armadura eficaz, porquanto nós mesmos não pretendemos deixar-nos
enganar. Não temos, pois, razão alguma para queixar-nos de que as
trevas são mais fortes que a luz, ou que a verdade é vencida pela
falsidade; antes, porém, quando somos desviados do correto caminho da
salvação, estamos recebendo o castigo por nossa própria displicência e
indolência.
Mas
aqueles que condescendem com seus próprios erros, alegam que
dificilmente é possível decidir que gênero de pessoa Paulo está
descrevendo aqui. Como se houvesse qualquer propósito na mente do
Espírito para pronunciar esta profecia e publicá-la com tanta
antecedência. Pois se não houvesse nenhuma indicação infalível do que
era pretendido por ela, a presente advertência seria tanto supérflua
quanto ridícula. Não ousamos, porém, concluir que o Espírito de Deus
nos assuste sem causa, ou que, quando preanuncia algum perigo, também
não nos mostre como precaver-nos dele. As próprias palavras de Paulo
são por si mesmas plenamente suficientes para refutar essa falsa
censura, pois ele põe o seu dedo naquele mal, contra o qual nos adverte
para que o evitemos. Ele não fala simplesmente, em termos gerais,
sobre os falsos profetas, senão que também nos dá um expresso exemplo
do falso ensino, ensino esse que, ao fazer a piedade consistir de
exercícios externos, perverte e profana o culto espiritual de Deus,
segundo afirmei acima.
Alguns apostatarão da fé. Não
fica muito claro se ele está falando dos mestres ou dos ouvintes, mas
prefiro tomá-lo como uma aplicação aos últimos, visto que prossegue
tratando dos mestres quando os chama de espíritos sedutores. E mais
enfático dizer que não só haverá quem divulgue os ensinos ímpios e
corrompa a pureza da fé, mas também dizer que não faltarão alunos que
sejam atraídos para suas seitas. E quando uma mentira aumenta sua
influência, ela avoluma as dificuldades. Mas ele não está falando de um
erro trivial, e, sim, de um mal terrível, a apostasia da fé, embora à
primeira vista não pareceria ser tão mal assim à luz do ensino que ele
menciona. Pois como é possível ser a fé completamente subvertida pela
proibição de certos alimentos ou do matrimônio? Devemos, porém, levar
em conta uma razão mais ampla, ou seja, que aqui os homens estão
inventando um culto divino pervertido para a satisfação de seu ego; e
ao ousarem proibir o uso de coisas saudáveis que Deus permitiu, estão
alegando que são os mestres de suas próprias consciências. E tão logo a
pureza do culto é pervertida, não permanece nada íntegro e saudável, e
a fé é completamente subvertida. Por isso, ainda que os papistas
debochem de nós, ao criticarmos suas leis tirânicas acerca de
observâncias externas, temos consciência de que estamos lidando com um
assunto seríssimo e importantíssimo; porque, assim que o culto divino é
contaminado com tais corrupções, a doutrina da fé é também subvertida.
A controvérsia não é acerca de carne e peixe, ou acerca das cores
preto ou cinza, acerca de quarta-feira ou sexta-feira, e, sim, acerca
das más superstições dos homens que desejam obter o favor divino por
meio de tais futilidades e pela invenção de um culto carnal, fabricando
para si ídolos no lugar de Deus. Quem ousaria negar que fazer isso é
apostatar da fé?
Espíritos sedutores. Ele
está se referindo a profetas ou mestres, aplicando-lhes esse título
porque se vangloriavam de possuir o Espírito, e ao procederem assim
estavam causando impressão sobre o povo. Em geral, é deveras verdade que
todas as classes de pessoas falam da inspiração de um espírito, mas
não o mesmo espírito que inspira a todos. Pois às vezes Satanás passa
por espírito mentiroso na boca dos falsos profetas, com o fim de iludir
os incrédulos que merecem ser enganados [1 Rs 22.21-23]. Mas todos
quantos atribuem a Cristo a devida honra falam pelo Espírito de Deus,
no dizer de Paulo [1 Co 12.3]. Esse modo de expressar-se teve sua
origem na reivindicação feita pelos servos de Deus, a saber, que todos
os seus pronunciamentos públicos lhes vieram por revelação do Espírito;
e, visto que eram os instrumentos do Espírito, lhes foi atribuído o
nome do Espírito. Mais tarde, porém, os ministros de Satanás, através
de uma falsa imitação, como fazem os símios, começaram a fazer a mesma
reivindicação em seu favor, e da mesma forma falsamente assumiram o
mesmo nome. Eis a razão por que João diz: "provai os espíritos, se
realmente procedem de Deus" [1 Jo 4.1].
Além
do mais, Paulo explica o que quis dizer, acrescentando: e doutrinas de
demônios, o que equivale dizer: "atentando para os falsos profetas e
suas doutrinas diabólicas". Uma vez mais digamos que isso não constitui
um erro de somenos importância ou algo que deva ser dissimulado,
quando as consciências dos homens são constrangidas por invenções
humanas, ao mesmo tempo que o culto divino é pervertido.
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