Na Idade Média, o comércio de relíquias
sagradas e mesmo de um pedaço do céu garantia ao homem pecador a
possibilidade de se livrar da pena adquirida pelos seus erros.
Na modernidade, as indulgências
continuam a exercer o mesmo poder. Porém, seus conceitos foram renovados
e embutidos em produtos e serviços, como seguros de vida associados a
Cristo, amuletos da salvação, cartões de crédito missionários,
consórcios de viagem espiritual a Israel, pílulas de emagrecimento
milagroso, carnês da cura que são vendidos por igrejas, seitas e grupos
religiosos nos templos, na internet e na TV.
Em alguns casos, não é preciso comprar
diretamente a “bênção”. Ao fazer doações em dinheiro ou de bens, o
religioso está apto a receber, não só um mover sobrenatural, mas, também
brindes e presentes, como CDs de músicos famosos, DVDs de grandes
pregadores, revistas religiosas, cadernos, livros sobre fortalecimento
da crença, almofadas e toalhinhas cheias de poder e água consagrada
capaz de realizar transformações.
No mercado da fé, que tem movido no
Brasil uma montanha de dinheiro – aproximadamente R$ 15 bilhões ano no
Brasil– há casos de empresas e instituições religiosas que chegam a
vender a “Santa Ceia” e “óleo da unção” pelos Correios.
No entanto, um dos produtos sagrados que
têm causado polêmica no Brasil é o Seguro de Vida e Auxílio Funerário
100% Jesus, de R$ 24,90 mensais, comercializado pela Igreja Mundial do
Poder de Deus, em parceria com a corretora Sossego e a Mapfre.
No Estado, a promotoria de Defesa do
Consumidor de Vitória começou a investigar a regularidade do serviço. A
intenção é verificar se o nome do seguro é coerente, respeita a harmonia
das relações de consumo ou se faz propaganda enganosa.
“Notificamos a Superintendência de Seguros Privados (Susep) e vamos
esperar um parecer quanto à legalidade do serviço para verificar se o
nome do serviço faz com que o consumidor fique vulnerável”, explica a
promotora Sandra Lenbruber.
O seguro tem cobertura de R$ 8 mil e assistência funeral de R$ 3 mil, mais vale-alimentação por seis meses aos beneficiários.
Em um vídeo publicitário na TV,
transmitido nos comerciais do programa da igreja, os donos do seguro
tentam chamar a atenção do consumidor ao mostrar um homem atormentado,
com medo de morrer. Num criado-mudo, ao lado da cama do personagem,
aparece uma Bíblia e ao ouvir o locutor da peça publicitária falar das
vantagens do serviço, ele sorri, apaga a luz do quarto e volta a
descansar aliviado.
Ida a igreja
A GAZETA foi a uma Igreja Mundial de Vitória na tentativa de comprar o
seguro. O pastor do local, bem receptivo, disse que o serviço ainda não
foi lançado nas igrejas e que por enquanto estava à venda apenas no site
da Mundial e na TV.
A reportagem entrou no site da Igreja
Mundial (www.impd.com.br), porém, as informações sobre os planos de
benefício, que até junho estavam na página, foram retiradas devido à
repercussão que a história alcançou na mídia nacional. As vendas agora
são feitas por outra página (www.sossego.com.br/jesus).
No site, há, inclusive, o depoimento de um dos bispos da entidade sobre a qualidade do produto.
“O Seguro 100% Jesus garante a sua
tranquilidade financeira e de sua família nos momentos difíceis e evita
que vocês fiquem desamparados. É seguro como a sua fé. Eu já contratei o
meu”, afirma o bispo Fábio Valentte.
O apóstolo e líder da Igreja Mundial, Valdemiro Santiago, nos cultos na
TV, tem negado que o seguro seja da igreja. Ela afirma só recomendar que
os “obreiros” adquiram o produto apenas para proteger suas famílias.
Ao ligar para os canais de vendas do
seguro, uma gravação eletrônica afirma vender produtos intitulados
“família tranquila”. A atendente diz pertencer a uma empresa
terceirizada contratada pela Mundial e pela Sossego para fazer a venda
do seguro.
A Susep informa que o Seguro de Vida
100% Jesus se trata de um nome fantasia para um produto existente,
vinculado à Mapfre. Por isso, não estaria irregular.
A Mapfre afirma que está vinculada ao
produto, porém, explica que: “a adequação do produto quanto ao nome e às
coberturas é de responsabilidade da instituição religiosa e da
corretora.” A Igreja Mundial foi procurada, mas não respondeu à
reportagem.
Carnê de cura substitui tratamento
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Sou
contra a venda de produtos na igreja. Não vejo ninguém comercializando
bênção. O lencinho é gratuito”. Hércules Lima membro da Mundial
O carnê da cura de uma
igreja neopentecostal, pago todo o mês, prometia sarar a avó de Antonio
Affonso do diabetes. Crente que estava livre da doença, ela parou de se
cuidar. Um dia, a alta taxa de glicose, provocou nela um AVC fatal. “Fui
conversar com o pastor e ele disse que minha vó morreu porque não teve
fé suficiente. O valor que deveria ser pago à igreja dependia da doença e
do poder do milagre esperado”, conta Antônio que é pastor Batista
Reformado.
Ele se converteu ao protestantismo anos
após a morte de sua avó e afirma que não há no Cristianismo espaço para a
compra da salvação. “Ela é pela graça. O que vejo é que há muitas
igrejas abusando da inocência das pessoas. O povo brasileiro é místico e
carente e acaba sendo atraído por pessoas que oferecem óleo santo,
pedaço da cruz. Há uma mercantilização da fé, com apelos para as
ofertas”.
Óleo da bênção vira brinde
Algumas igrejas não vendem produtos
consagrados, porém prometem brindes materiais e espirituais para fiéis
que fazem doações. Há casos de denominações que presenteiam seus membros
até com chaves sagradas e entregam para os frequentadores, dentro do
envelope do dízimo, um pequeno frasco de um óleo ungido, capaz de
“resolver todos os problemas”. O líquido deve ser passado nos ouvidos
para que a pessoa receba boas notícias.
Membro da Igreja Mundial, Hércules Lima
não se separa do lenço da bênção, que ganhou da instituição. Ele afirma
que em sua igreja não é uma prática vender objetos sagrados. O que
ocorre é a entrega de presentes àqueles que doam.
“Não há a comercialização de livros e
DVDs. Não acho correto uma denominação vender produtos. Ninguém está
acima da Palavra de Deus. Ela proíbe essa prática. Quanto às doações,
não há nada imposto. Mas a pessoa tem que ter consciência que, quando dá
algo a alguém, pode receber um brinde ou mesmo um presente no futuro,
lá no céu”.
Estímulo à doação
Com discursos encorajadores, e com
promessas de salvação ou de retorno em dobro dos bens, a máxima “é dando
que se recebe” tem tomado conta das orações.
Os pedidos são feitos para arrecadar
dinheiro para a construção de igrejas. Tem pastor que chega a vender,
pela TV, Bíblia por R$ 900 e afirma que o dinheiro levantado servirá
para ajudar nas obras de um importante templo.
A GAZETA foi a duas igrejas em Vitória e
constatou que as doações, muitas vezes, são vinculadas a bênçãos. Na
Igreja Universal do Reino de Deus, enquanto pedia ofertas para os fiéis,
para ajudar na construção do Templo de Salomão, que ficará no Brás, em
São Paulo, o bispo estipulou um valor médio de R$ 1 mil para ser doado.
Os
exemplos de quanto poderiam doar chegaram aos R$ 20 mil. Algum tempo
depois ele mudou o discurso. “Eu não vou falar o teu valor. Ou mil pra
cima ou mil pra baixo. Falo esse valor só para lhe mostrar a importância
de gravar esse número. Porque Deus quer te fazer grande”.
Já na Igreja Mundial do Poder de Deus em
Vitória, foi constatada a entrega de brindes, como uma chave consagrada
para quem fizesse doações “ouro, prata ou bronze”.
Lá também o fiel pode dar ofertas por
meio de dois carnês: o da multiplicação – com valores de R$ 30, R$ 50 e
R$ 100 –, e o das Grandes Realizações – no valor de R$ 100. Todos contêm
o número de três contas bancárias para depósitos. Em letras pequenas,
no verso da folha, encontra-se escrito “Faça aqui o seu pedido”.
Segundo o pastor Batista Antonio
Affonso, as doações feitas às igrejas e os dízimos não devem estar
ligados a promessas nem a brindes. E afirma ainda que o recurso deve ser
aplicado nas igrejas locais. “Uma denominação não pode pedir dinheiro
de forma nacional”.
Ele explica que uma das propostas das
ofertas é a manutenção das atividades e que parte dos recursos podem ser
aplicada no desenvolvimento de serviços comunitários. “Tem uma igreja
em Cabo Frio (RJ) que utiliza parte das ofertas para construir casas
para pessoas carentes. É louvável. Meu sonho era construir um prédio
para atender à comunidade, oferecendo serviços sociais. A igreja tem que
atender à comunidade, não pensar só em si mesma”.
Adesão à venda porta a porta
A moda do marketing de vendas diretas
chegou às igrejas. Grupos religiosos estão oferecendo aos fiéis a
possibilidade de se tornarem revendedores de livros, Bíblias, CDs e
ainda ter uma alta lucratividade.
Dois pastores e tele-evangelistas de
renome nacional estão comercializando um modelo de revendas de porta em
porta e prometendo ganhos de até 100% aos sócios.
Um dos casos é do pastor Silas Malafaia,
da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, no Rio de Janeiro, e
dono da editora Central Gospel.
O tele-evangelista tem divulgado na TV e
também em suas páginas da internet a oportunidade de negócios. Para
quem se cadastrar, o pastor promete até disponibilizar uma máquina de
cartão de crédito.
O pedido mínimo que deve ser feito
durante a adesão é de R$ 300 para qualquer categoria de revendedor:
prata, ouro ou diamante. O lucro prometido varia de 25% a 100%.
Outro pastor que aderiu ao sistema de vendas diretas é R.R. Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus.
Segundo publicidade no jornal da igreja e
no site www.catalogodopovo.com.br, a pessoa pode se tornar um consultor
de sucesso e lucrar muito.
O site afirma que ao formar consultores o
objetivo do negócio é “levar o Evangelho do Senhor Jesus aos perdidos e
também aos que precisam crescer na fé”, diz. O pedido mínimo para quem é
consultor é de R$ 160. A lucratividade é de 30% do valor investido.
Suspeita de pirâmide gospel no mercado
Temas evangelísticos e produtos missionários também são usados para chamar pessoas para o setor de marketing multinível.
Enquanto
a força-tarefa de promotores de defesa do consumidor investiga 80
empresas suspeitas de formação de pirâmide financeira, o site Eu
Evangelizo (www.evangelizo.com) oferece lucratividade para quem recrutar
novos associados, interessados em comprar kits com materiais de
evangelização.
O site afirma que o Eu Evangelizo é da
Igreja Evangélica Missão Apascentar e garante lucro até o sétimo nível
da rede do associado.
A GAZETA procurou os responsáveis pelo site, por meio do e-mail contato@euevangelizo.com, mas ninguém respondeu.
A Igreja Apascentar, sediada em Nova
Iguaçu, foi procurada e se surpreendeu com a utilização do nome da
entidade em um trabalho de marketing de rede.
Em nota, o pastor da igreja, Marcus
Gregório, disse não recomendar e não ter esse tipo de parceria. “Não
desenvolvemos em nosso ministério esse trabalho de marketing multinível,
assim como não apoiamos tal trabalho, nem abençoamos. Na verdade
amaldiçoamos e repudiamos quem está usando o nome da igreja para esse
fim e até mesmo arrecadando dinheiro. O nome Apascentar está sendo usado
indevidamente, sem nosso conhecimento e autorização legal”.
Até consórcio para quem quer viajar a Israel: pacote custa R$ 10 mil, que são parcelados em até 48 vezes
A busca pela proximidade com Deus está
criando no Brasil um lucrativo mercado de viagens religiosas. São mais
de 3,5 milhões de passeios por ano realizados fora do país, segundo
estimativas do Ministério do Turismo. Um dos locais mais visados é
Israel. Grupos religiosos chegam a formar agências de viagens e mesmo
oferecer consórcios para os fiéis.
Cartões de crédito que exalta a “benção à Obra do Senhor”
Só em 2012, 60 mil brasileiros foram para Jerusalém por questões religiosas, de acordo com o Ministério de Turismo de Israel.
Um dos casos curiosos é o do apóstolo
Renê Terra Nova, do Ministério Internacional da Restauração, de Manaus.
Ele lidera um dos maiores movimentos neopentecostais do país, tendo
seguidores inclusive no Espírito Santo.
Além de pastor, é dono da agência Terra
Nova Group, responsável em realizar as peregrinações para Israel. Em
suas mensagens no YouTube, o apóstolo afirma que é necessário que todo o
cristão vá pelo menos uma vez para Israel. O líder também estabelece a
cada um dos pastores uma meta de no mínimo 10 pessoas que devem ser
conquistadas para as caravanas.
No site da agência, além da contratação
do pacote de viagens, que custa em média US$ 5 mil (R$ 10 mil), o
consumidor pode contratar consórcio, sem consulta ao SPC e à Serasa, com
carta de crédito de R$ 7 mil a R$ 10 mil. O fiel interessado pode pagar
o consórcio em 12 ou 48 prestações.
Apesar de mostrar as condições do
consórcio, o site não disponibiliza contrato nem explica qual é o órgão
responsável pelo produto de valores mobiliários. Para conseguir
informações, a reportagem ligou para a agência em Manaus, e a atendente
disse que lá funcionava a Embaixada de Israel.
Outro lado
A GAZETA também contatou o diretor de
Caravanas da agência, Marcus Almeida. Segundo ele, o consórcio do Terra
Nova Group foi adaptado e pertence ao Banco Rodobens. “Pegamos um
consórcio de serviços e demos o nome de Consórcio de Israel”.
A operação, garantiu, é legal. E ao
realizar caravanas, o grupo visa a incentivar a ida à Terra Santa. “Ir
para Israel é inevitável. Nós incentivamos todos a irem para lá, mas não
obrigamos a comprar conosco. As metas estabelecidas não são comerciais e
sim espirituais”.
Almeida acrescenta que o contrato do
consórcio é fechado junto à Rodobens e que a atendente errou ao falar
Embaixada de Israel. Ele explica que o nome certo é Embaixada Cristã de
Jerusalém. “Com o consórcio, apenas buscamos facilidades para as
pessoas. Somos os maiores divulgadores de Israel no país. Já chegamos a
levar 3,5 mil pessoas para lá em um ano. Neste ano, devemos levar mil
pessoas”.
Segundo a Embaixada de Israel, não há
autorização para que nenhuma entidade utilize o nome do órgão por
questões religiosas nem comerciais.
A instituição também explica que brasileiros gastam em média US$ 3,5 mil (R$ 7 mil) para viajar ao país.
Em nota, a Rodobens declara que não
possui nenhum tipo de relação com a instituição denominada Terra Nova
Group, desconhecendo totalmente eventual oferecimento de consórcio por
essas pessoas em seu nome. O banco diz também não autorizar o uso de
seus produtos por meio de sua rede de prestadores de serviços e
parceiros comerciais.
A rede da fé
Kit comunhão
No YouTube apresenta o kit comunhão, que
vem com artigos para a “Santa Ceia” e óleo ungido. O pacote custa R$
300 e promete ajudar pessoas com problemas espirituais, emocionais, de
depressão, questões financeiras, entre outras questões.
Cartão de crédito
Várias igrejas oferecem cartões de
crédito para os fiéis. Algumas afirmam disponibilizar um cartão
missionário, com o dinheiro arrecadado seria possível levantar recursos
para realizar missões, como é o caso da Assembleia de Deus.
Lojas virtuais
Igrejas ou empresas ligadas a
denominações religiosas também realizam o comércio de produtos, como
CDs, canecas, chaveiros e artigos religiosos. No ramo católico
carismático, o Canal Canção Nova tem uma loja virtual na internet para
vender produtos e arrecadar recursos para a construção do Santuário do
Pai das Misericórdias.
Feiras
Tanto no ramo católico quanto cristão
evangélico, são realizados eventos como feiras. No setor católico, há
caso de roupas e batinas para padres que chegam a custar R$ 7 mil. No
nicho evangélico neopentecostal, as feiras, além de Bíblias eletrônicas
semelhantes a um MP4, são vendidas até pílulas de emagrecimento
milagroso.
Sites de compras coletivas
O mercado da fé tem mexido até com o
setor de compras coletivas. Um grupo criou o Clube das Ovelhas, que
vende livros e diversos produtos gospel.
Shopping do Pastor
Para pastores que estão fundando suas
igrejas, há páginas na internet que oferecem produtos como manto
sagrado, chaves da bênção, galão de água consagrada ou outros objetos
neopentecostais.
O outro lado: Igrejas se calam
A reportagem, durante a última semana,
procurou pastores e líderes das igrejas. Silas Malafaia, segundo a
assessoria de imprensa, estaria com a agenda cheia e não teria como dar
entrevistas. Para a Mundial do Poder de Deus, foi enviado e-mail, feitas
ligações para a igreja, para o setor administrativo e para a
comunicação, e nenhuma resposta foi enviada. A Igreja Internacional
também não respondeu aos e-mails e aos telefonemas. A Universal também
foi procurada, mas não respondeu aos e-mails nem retornou às chamadas. O
canal Canção Nova, também consultado pela reportagem, não respondeu aos
questionamentos apresentados.