Por Isque Sicsú
Existe uma expressão muito conhecida, especialmente entre os teólogos, que diz: “É impossível colocar Deus numa caixinha”.
Com essa expressão, queremos dizer que Deus está tão além da
compreensão humana, que é impossível propor uma definição que consiga
exaurir todo o ser divino.
O problema é que na prática as coisas não funcionam de forma tão simples
assim. Depois de passar anos debruçado sobre livros, respirando todos
os ácaros das bibliotecas, dissecando as Escrituras nas línguas
originais, e aprendendo todos os tipos de categorias teológicas, o
teólogo começa achar que Deus é como aquela namorada que conhecemos
muito bem. E por isso, ele conclui que pode definir com toda segurança a
essência divina. Ele passa a crer que é um especialista em Deus, e que é
capaz de explorar e definir a pessoa e o modus operandi divino.
Entretanto, este indivíduo “cai do cavalo” quando Deus aparentemente
contradiz o seu bairrismo teológico. Ele fica sem respostas quando seus
credos não mais explicam, suas categorias não mais comportam e suas
definições não mais resumem.
Jó, o personagem bíblico, e seus amigos teólogos sofrem desse mal. São
indivíduos que diante de uma aparente incoerência divina, debatem,
replicam, treplicam, mas o fato é que suas categorias teológicas não
conseguem explicar o que está acontecendo na prática. Observemos com
mais cuidado.
O livro de Jó nos apresenta um cenário em que tudo faz sentido, onde
todas as categorias teológicas funcionam bem direitinho. Jó, um homem
piedoso, justo e temente a Deus, goza abundância, prosperidade e
felicidade. Do ponto de vista teológico, tudo bem! Afinal de contas,
nada mais normal do que ver Deus abençoando um homem justo e piedoso.
Agora, o castelinho de cartas das categorias teológicas simplesmente
desmorona, quando Deus decide sair da caixinha e permitir que as maiores
atrocidades aconteçam na vida de um homem justo e piedoso. De repente,
Jó perde a fortuna, filhos e a saúde. E agora, José? Como explicar um
quadro como esse? Se Deus é bom, soberano e justo, por que ele permite
tamanho mal? Por que existem crianças morrendo de fome na África? Por
que pessoas piedosas morrem nas filas dos hospitais do SUS? Por que
tsunamis e terremotos varrem países matando milhares de pessoas? E pior,
por que Deus permite que o traficante, o político corrupto, o mafioso
viva uma vida regalada, feliz e próspera? Por que o mundo é caótico e
tudo parece fora dos eixos?
Diante deste quadro, todos os personagens do livro de Jó vestem a toga
teológica e começam um debate, numa tentativa de colocar Deus de volta
na caixinha. A mulher de Jó é uma teóloga epistemologicamente
empiricista e conclui: “Deus é injusto”; Os três amigos de Jó são
teólogos racionalistas e concluem: “Jó, você está sendo punido por
Deus!”; Eliú, o amigo mais novo e aparentemente o mais centrado, baseado
numa epistemologia um tanto existencialista, conclui: “Ei, velharada,
vocês estão errados. Jó sofre porque Deus quer ensinar algo a ele”.
Depois que todos os teólogos debateram, que o dispensacionalista brigou
com o aliancista, que o calvinista “quebrou o pau” com o arminiano, que o
reformado cutucou o evangélico, e todos os tipos de categorias foram
expostas e defendidas, Deus decide entrar na parada. E a resposta da
parte de Deus pode ser resumida com a seguinte frase: “Estou pouco me
lixando para suas categorias teológicas”.
Sim! O discurso divino não chega nem perto de ser considerado uma
resposta aos questionamentos e categorizações do teólogo Jó. Deus não se
preocupa em prestar contas e dar satisfações de todos os pormenores de
seu governo. A “não-reposta” de Deus às interrogações da mente de Jó
deve ser lida assim: “Amigo, a maneira como me conduzo e governo o
universo não é da sua conta”. Robert Alter emThe Art of Biblical Poetry
(Basic Books) sugere de forma brilhante que ao invés de responder os
questionamentos de Jó, Deus sarcasticamente o questiona acerca da sua
habilidade em produzir relâmpagos, fazer o sol nascer, derramar a chuva,
estabelecer os limites dos oceanos, etc.
Além disso, Deus não somente se revela soberano sobre a criação, mas
também sobre o caos (uma clara figura teológica para a ausência do bem).
O “Beemote” (Jó 40.15 בהמות) e o “Leviatã” (Jó 41.1 לויתן) são símbolos
do caos na literatura bíblica e cananita (ver John Day, God’s conflict
with the Dragon and the Sea). Assim, Deus revela seu governo sobre o
mundo e sobre todas as forças que são contrárias a ordem criada e
estabelecida.
Embora não seja da alçada de Jó compreender todas as operações da
justiça divina, ele é convidado a confiar no Criador da ordem, no Senhor
das forças cósmicas, naquele que tem poder para suprimir o caos que
invadiu sua vida e restaurar a ordem natural dos eventos de sua
experiência.
Portanto, não é papel do teólogo tentar categorizar o ser divino ao
tentar forçá-lo dentro de uma caixinha teológica. Simplesmente, porque
Deus se recusa entrar na caixa. Sua tarefa é nada mais do que o
privilégio de vislumbrar a majestade do Criador e deixar ser vencido por
seu poder e soberania.
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