Por Mauricio Zágari
O polêmico Festival Promessas, que levou alguns artistas gospel à telinha da Globo, causou um grande debate entre três segmentos de cristãos: os que viram nisso uma grande coisa, aqueles que consideraram o evento irrelevante e os que viram no programa um mal. A despeito da posição de cada um sobre o show, um aspecto do debate entre os prós e os contras chamou atenção: a questão da CRÍTICA.
O polêmico Festival Promessas, que levou alguns artistas gospel à telinha da Globo, causou um grande debate entre três segmentos de cristãos: os que viram nisso uma grande coisa, aqueles que consideraram o evento irrelevante e os que viram no programa um mal. A despeito da posição de cada um sobre o show, um aspecto do debate entre os prós e os contras chamou atenção: a questão da CRÍTICA.
Uma
das principais críticas dos que criticaram quem criticou o espetáculo
da Globo é que os críticos…foram críticos. Ou seja: para defender seu
ponto de vista são incontáveis os cristãos que adotaram discursos na
linha “tem gente que só critica e não faz nada” ou “como pode alguém
criticar quem está fazendo algo?” e por aí vai. Diante disso, surgem
diversas perguntas: qual deve ser a relação entre o cristão e a
critica? De fato quem critica não faz nada? É pecado criticar? Criticar
é murmurar? Criticar representa rebeldia? Crítica é algo diabólico?
Enfim, há um rosário de assuntos que podem ser debatidos sobre o tema.
Mas eu pretendo mostrar até o fim deste texto que se criticar fosse um
grande mal, o próprio Deus Pai, Jesus, os apóstolos, a Igreja
primitiva, os reformadores e outros cristãos sérios seriam, imagine
você, seres malignos. O que simplesmente não é verdade.
Esse
ensinamento de que a crítica é algo ruim vem sendo ensinado aos
evangélicos que não têm senso crítico por alguns pastores que… não
querem ser criticados. Um exemplo famosíssimo (a gravação está no
Youtube, para quem quiser ouvir) é o de um conhecido telepastor, dono de
uma editora e outras mídias, que prega a Teologia da Prosperidade e
lançou uma campanha para arrecadar milhões do povo prometendo “unção
financeira” a quem doasse dinheiro a sua organização – dinheiro que,
até onde foi divulgado, serviu para ele comprar um jato particular. Na
gravação, esse empresário-pregador solta essa pérola: “Quem critica não faz nada. Você conhece alguma obra de crítico? Você conhece alguma coisa que crítico construiu? Geralmente crítico é um recalcado que tem dor de cotovelo do sucesso dos outros”.
Quando
um homem influente como esse lança esse tipo de discurso ao cristão
que não tem muita capacidade de discernimento, a ideia soa como sendo
uma verdade quase bíblica. Por exemplo: depois que publiquei no APENAS
semana passada o post Festival Promessas e a guerra de opiniões e fui atacado por todos os lados por muitos críticos ao que escrevi (como mostrei no post seguinte, Festival Promessas: um raio-x da igreja brasileira),
li nos comentários do blog mais pérolas que versavam sobre o fato de
alguém criticar outro. Só que, desta vez, vindas de irmãos que apoiam o
evento da TV Globo. Pérolas como estas:
“Realmente vivemos em um mundo onde os críticos cristãos também querem se engradecer por isso utilizam das críticas para fazerem seu nome.”
“é
complicado,,tem pessoas que não tem,a vontade de realizar ,um culto de
rua,e quando outros pracura fazer alguma coisa ,só sóbra criticas,,,faiz alguma coisa ,não perde tempo criticando“
“Essa galera não faz nada pra anunciar o evangelho e critica quem faz”.
“Que lamentável essa sua posição! Você, ainda, tem coragem de criticar os irmãos que se ofenderam uns aos outros por causa disso?”
“É mais facil criticar e desqualificar os que o fazem”.
“Reclamava-se tanto que sempre a Globo ou outras emissoras não davam espaço para o Evangelho e quando se chega lá ainda criticam??”
“CRITICAR ISSU É REDUNDANTE E HIPÓCRITA.”
“INFELIZMENTE TIVE O DESPRAZER DE CONHECER ESTE BLOG, É MAIS UM DE MUITOS, DOS CRITICOS DA IGREJA, –QUE FICARÃO — CRITICANDO, ENQUANTO JESUS SOBE COM A SUA NOIVA.”
“Prefiro ir e dar de graça o que recebi a permanecer sentado criticando quem realmente está fazendo a obra de Deus.”
“OS VERDADEIROS CRISTÃOS ESTÃO NAS RUAS (…) NÃO PERDENDO TEMPO EM ESTATOS E EM CRÍTICAS“.
“O tempo que você perde criticando, é o mesmo que poderia estar edificando”.
Chamam
especial atenção as duas últimas frases, pois a penúltima dá a
entender que criticar é perda de tempo e a última desassocia a crítica à
edificação, como se fossem antagônicas. O que é interessante nesse
debate é que a “famigerada” crítica é apontada como algo menor,
pecaminoso, diabólico; e os críticos, naturalmente, só podem ser pessoas
mal-intencionadas, frustradas, “recalcadas”, que não ajudam em nada. O
tom dos comentários deixa claro que, aos olhos de muitos, ser
crítico, ou seja, ter senso crítico no universo cristão, é
desqualificador, sintoma de inveja, de apatia, de inoperância ou de
qualquer coisa do gênero. Quando, em sua raiz etimológica, criticar significa uma atitude nobre: pelo dicionário, “criticar” significa “analisar, fazer uma apreciação”, “examinar com atenção”).
Aliás,
se minha Bíblia não estiver errada, “examinar com atenção” (sinônimo,
segundo o dicioário, de “criticar”) é exatamente o que os crentes de
Bereia faziam e que lhes mereceu o seguinte elogio de Lucas em Atos
17.11: “Os bereanos eram mais nobres do que os tessalonicenses, pois receberam a mensagem com grande interesse, examinando todos os dias as Escrituras, para ver se tudo era assim mesmo“. Sim, os bereanos foram chamados de “nobres” por serem muito críticos. Que coisa…
O
que o cristão crítico que critica quem critica talvez não saiba é que
seu tipo de pensamento é resultado de uma enorme ignorância bíblica e
histórica. Pois, em especial no caso do Cristianismo, se não fosse a
crítica a banda séria e sólida da Igreja hoje talvez nem existisse. Os
críticos vêm ajudando a manter a doutrina sã ao longo dos séculos, a
preservar a ortodoxia cristã e a purgar os erros cometidos pelo meio da
jornada. E mais: se você desmerece alguém por ser crítico, lamento
informar, você está desmerecendo o próprio Deus.
“Ahn?!
Tá maluco, Zágari! Se crítica é algo diabólico, como Deus pode ser
crítico?”. Vamos então aos fatos – antes que aqueles que não leem posts
inteiros e já saem criticando sem ter lido tudo comecem cantilenas
desmerecendo argumentos – para, sem entrar pelo mérito da opinião
pessoal e do achismo, fazer o que todo cristão deveria fazer: olhar para
a Biblia e a História da Igreja. E deixemos não que Mauricio Zágari
fale, mas sim passemos a palavra ao testemunho das Escrituras e da
História:
NA BÍBLIA
Deus
Pai é logo de cara o primeiro a fazer inúmeras criticas relatadas nas
Escrituras. Em Gênesis 3, Ele critica Adão, Eva e até Satanás por suas
atitudes. Depois critica Caim pela morte de Abel. Em Gn 6.3, o Criador
critica a humanidade e a chama de “carnal”. Os séculos passam e Deus
segue criticando. A crítica que Ele faz aos habitantes da Terra no
episódio do Dilúvio dispensa comentários. Na ocasião do Êxodo, o
Todo-Poderoso disse que seu próprio povo eleito, Israel, era formado por
gente de “dura cerviz”, ou seja, “teimosa”, “intransigente”. Também
mandou seus profetas criticarem atitudes de sacerdotes, reis,
religiosos, homens e mulheres comuns. Alguém que conheça um pouquinho de
Bíblia verá que Jeová, o Construtor do universo, criticou muito – em
especial os desobedientes. E aí eu penso nas palavras do telepastor: “Você conhece alguma obra de crítico? Você conhece alguma coisa que crítico construiu?”. Hmmm…o universo, talvez?
Os
profetas, então, eram críticos em tempo integral. Jeová mandava um
recado e lá ia uma crítica a Jezabel, Davi ou qualquer outro que
estivesse em pecado ou cometendo erros. Natã não usou meias-palavras ao
criticar o que Davi fez com Urias e Bateseba. Elias dava boas
cajadadas. Imagine então Eliseu, que tinha porção dobrada. Sim, o
ofício profético no Antigo Testamento fazia do profeta um crítico em
tempo integral. Estão aí Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel e outros
que não me deixam mentir. E o maior dos homens nascidos de mulher (Mt
11.11), João Batista, era tão crítico que Herodias disse a sua filha
que pedisse a Herodes a cabeça do profeta, de tanto que ser criticada
lhe incomodava (aliás, uma atitude muito comum a quem é criticado:
pedir a cabeça de quem o critica).
Então penso em tudo o que os profetas fizeram a mando de Deus e me voltam à mente as palavras do telepastor: “quem critica não faz nada”. E
me pergunto: será mesmo que argumentos como “você não faz nada, só
critica” têm fundamento? Pois a crítica em si, do ponto de vista
bíblico, já é fazer muita coisa! Ou “enquanto eles estão lá fazendo a
obra você só sabe criticar”, pois muitas e muitas vezes uma crítica bem
feita e bem posta pode gerar muito mais frutos para o Reino de Deus do
que subir num palco e cantar meia-dúzia de músicas. Ou ficar pedindo
dinheiro na TV.
Mas continuemos na
Bíblia. Surge em Israel um homem chamado Jesus de Nazaré. Ele criticou
escribas. Criticou fariseus. Criticou saduceus. Criticou publicanos.
Criticou Pedro quando o apóstolo quis demovê-lo da ideia de ir à Cruz.
Também criticou os apóstolos por serem “homens de pequena fé” na
ocasião da tempestade no mar. Criticou aqueles que só amam aqueles que
os amam. Criticou os hipócritas que dão esmola alardeando o fato ou
oram aos berros para chamar a atenção. Criticou os gentios que se
preocupavam com o que haveriam de vestir, comer ou beber. Criticou os
que reparam o argueiro no olho do irmão, porém não reparam na trave que
está no seu próprio olho. Criticou os falsos profetas, que se
apresentam disfarçados em ovelhas, mas que por dentro são lobos
roubadores. Criticou os que praticam a iniquidade. Criticou aqueles que
viessem a negá-lo diante dos homens. Criticou quem ama seu pai ou sua
mãe ou seu filho mais do que a Ele. Criticou quem não toma a sua cruz e
vem após Ele… e poderíamos prosseguir numa lista interminável, mas vou
parar no capítulo 10 do evangelho segundo Mateus (sim, todas as
críticas mencionadas acima estão em apenas 10 capítulos. Imagine se eu
prosseguisse até o capítulo 28 e continuasse por Marcos, Lucas e João).
É, meus amigos que criticam os críticos: Jesus foi um crítico infatigável. Mas… segundo o tal telepastor, um dos mais influentes do país, “geralmente crítico é um recalcado que tem dor de cotovelo do sucesso dos outros“. Hmmmm…
Nas
cartas às igrejas de Apocalipse o desfile de críticas de Jesus
continua. A igreja de Éfeso foi criticada por ter abandonado o primeiro
amor. A de Pérgamo recebeu criticas por haver entre eles “os que
sustentam a doutrina de Balaão, o qual ensinava a Balaque a armar
ciladas diante dos filhos de Israel para comerem coisas sacrificadas aos
ídolos e praticarem a prostituição”. A de Tiatira foi criticada por
tolerar que uma tal Jezabel “seduza os meus servos a praticarem a
prostituição e a comerem coisas sacrificadas aos ídolos”. Os cristãos de
Sardes foram criticados por Jesus não ter achado íntegras as suas
obras na presença de Deus… preciso continuar?
Se
você ainda não está convencido da verdade, vamos às epístolas. Caso
não saiba, a grande maioria delas foi escrita como forma de criticar
atitudes erradas que vinham sendo adotadas nas igrejas a que foram
destinadas, com o objetivo de instruir os cristãos e de consertar os
erros. Que, aliás, deve ser a finalidade de toda crítica. O apóstolo
João escreveu suas três epístolas para combater um grupo de cristãos
hereges chamados gnósticos e ele os critica duramente: “Mas todo
espírito que não confessa Jesus não procede de Deus. Esse é o espírito
do anticristo acerca do qual vocês ouviram que está vindo, e agora já
está no mundo“.
Em Colossenses,
Paulo critica os falsos mestres que tentavam combinar elementos do
paganismo e da filosofia secular com as doutrinas cristãs, induzindo a
um relativismo religioso. Em Filemon, ele critica a falta de perdão. Em
Romanos, tece muitas críticas, entre elas à dureza do coração, a
desobediência à verdade, à hipocrisia, à adoração de ídolos. Em 1
Timóteo, o apóstolo critica o excesso de eloquência em detrimento da
busca do Senhor. E quem acha que nas epístolas Paulo não critica
pessoas, em Gálatas o foco está nos judaizantes, criticados por
afirmarem que os gentios, para serem salvos, tinham que ser
circuncidados e guardar todas as leis de Moisés.
A
carta de 1 Coríntios é um caso à parte, tantas são as críticas que
Paulo faz, a título de instrução. Ao mau uso dos dons, à imoralidade
sexual, às pessoas que celebravam a Ceia do Senhor de modo equivocado e
por aí vai. Merece especial atenção 2 Coríntios, em que Paulo critica
veementemente os falsos mestres que buscavam enganar os cristãos da
igreja, afastando-os dos verdadeiros propósitos do Evangelho.
Já Tiago metralha críticas: ao formalismo, ao fanatismo, ao fatalismo, à
crueldade, à falsidade, ao partidarismo, à maledicência, à jactância e
à opressão. Judas, por sua vez, critica os mestres imorais e as
heresias da época.
NA IGREJA PRIMITIVA
Por
falar em heresias, havia muitas delas no seio da Igreja nos primeiros
séculos da era cristã. Saiamos agora das Escrituras e vamos para a
História. Naquela época surgiram grupos como ebionitas, maniqueus,
marcionitas, montanistas, donatistas, gnósticos, sabelianistas,
apolinaristas, nestorianos, eutiquianos e muitos outros. Todos se
apresentavam como seguidores de Cristo, mas pregavam teologias
diferentes, em especial quanto à essência de Jesus e a sua relação com o
Pai e o Espírito Santo. Contra eles levantaram-se em diferentes épocas
muitos e muitos cristãos ortodoxos, sérios, que passaram a defender a
são doutrina contra os hereges. E, adivinha só: eles os criticavam
duramente, em tratados, cartas e outros textos. Ou seja, se não fosse
pelo aguerrido senso crítico dos apologetas da Igreja primitiva muitas
heresias teriam tomado conta do seio da igreja. Você enxerga alguma com
com nossos dias?
E assim foi pelos
séculos. Atanásio criticou duramente Ário por suas posições teológicas
no Concílio de Niceia. Agostinho (considerado o maior teólogo da
história do Cristianismo) criticou Pelágio por desqualificar a graça na
salvação. Lutero (o homem sem o qual não existiria a Igreja
evangélica) criticou Roma por todos seus descalabros, o que acabou
deflagrando a Reforma Protestante.
Sim, caros críticos que criticam os críticos: a crítica e a Igreja sempre andaram de mãos dadas e em harmonia.
EM NOSSOS DIAS
Há
em nossos dias heresias surgindo a cada esquina. Pastores-poetas que
inventam que Deus não interfere nas tragédias, pastores emergentes que
dizem que Jesus é desnecessário para a salvação, Unções de 900 reais,
Teologia da Prosperidade, G-12, Liberalismo Teológico e outras agressões
à Palavra de Deus. Fora as atitudes não teológicas, como
mercantilização da fé, a criação de celebridades gospel e outros
problemas mais.
Diante disso, a
pergunta que fica é: devemos abandonar o senso crítico? Devemos parar
de criticar o que está errado? Devemos ficar passivos, vendo a banda
passar e não fazer nada? Devemos dar ouvidos às besteiras ditas pelos
telepastores que não querem ser criticados? Não. Devemos nos
posicionar. Temos como exemplos de Jeová aos teólogos modernos (como
Alister McGrath, que escreveu O Delírio de Dawkins, criticando
o ateísmo de Richard Dawkins). Se a Igreja que ama Cristo, ama a
Bíblia e ama a Igreja se calar, a situação ficará ainda pior do que
está hoje. Há uma heresia? Critiquemos. Há um abuso dentro da igreja?
Critiquemos. Há celebridades enganando o povo de Deus? Critiquemos. É
bíblico e historicamente correto.
E COMO CRITICAR DE FORMA A CONSTRUIR?
Mas há uma ressalva: toda crítica tem que ser feita de modo cristão, bíblico.
Se formos agir como o mundo não seremos melhores do que ele. Não
seremos sal nem luz e é melhor que sejamos lançados fora para sermos
pisados pelos homens. Nunca devemos criticar como o mundo critica: com
agressões, ofensas, xingamentos, gritarias, ad hominems,
argumentos equivocados ou ataques. Devemos seguir os passos do Mestre.
Ser mansos e humildes de coração. Devemos criticar como se cada crítica
fosse um tijolo posto para erguer uma catedral e nunca como se fosse
uma marretada para derrubar paredes. Nosso papel não é esse: temos de
ser diferentes. Temos de ser admirados pelo mundo por criticarmos sem
ofender e sem dar na cara de ninguém. Temos de andar na contramão do
mundo.
Infelizmente, há em alguns
setores no meio cristão aqueles que acreditam que crítica é algo
diabólico. Já mostrei que não é. Infelizmente, há em alguns setores no
meio cristão aqueles que acreditam que crítica é atacar e ofender.
Também não é. Criticar é apontar erros com educação. É examinar com
atenção e emitir pareceres refletidos. Pois em tudo o que vimos acima,
uma coisa fica clara: a crítica deve servir para melhorar as coisas,
aproximar as pessoas, construir um mundo mais cristão e, em última
(para não dizer primeira) análise, para a glória de Deus.
“Quem
critica não faz nada. Você conhece alguma obra de crítico? Você
conhece alguma coisa que crítico construiu? Geralmente crítico é um
recalcado que tem dor de cotovelo do sucesso dos outros”.
E você, continua acreditando nisso?
Paz a todos vocês que estão em Cristo.
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