Por Maurício Zágari
Posso chamar Deus de
“você”? Sei que essa parece ser uma pergunta boba e sem muita
importância para nossa vida espiritual, mas tanta gente começou a chegar
a mim com essa dúvida nos últimos tempos que resolvi dar uma certa
atenção a ela. Confesso que eu mesmo nunca tinha gasto muito tempo
pensando sobre isso e fiquei curioso: será que chamar o Senhor de “você”
é desrespeitoso? Será que apenas o “tu” configura honra ao Altíssimo?
Para chegar a um veredicto, precisei fazer uma pesquisa sobre as origens
dos termos e sobre o que a Bíblia tem a dizer sobre o assunto. É o que
apresento neste texto e você poderá tirar suas próprias conclusões.
É importante frisar que
só decidi investir um certo tempo nessa investigação porque percebi que,
de fato, o problema tem implicações práticas. O que ocorre, em geral, é
que, se uma pessoa que considera desrespeitoso chamar Deus de “você”
ouve um pregador se dirigir ao Todo-poderoso por essa forma de
tratamento, um detalhe como esse pode prejudicar a receptividade à
mensagem pregada. A preleção pode ter sido totalmente bíblica, mas o
fato de o pregador ter se dirigido a Cristo como “você” fez o irmão (ou a
irmã) sair do culto chateado. O mesmo ocorre no caso de um louvor,
pois, se você não concorda que é digno dirigir-se a Jesus como “você”,
ao ouvir um hino em que ocorra essa forma de tratamento vai se desligar
do céu e fechar a cara. Acredite: não são poucas as pessoas que se
sentem extremamente desconfortáveis ao ouvir alguém chamar Deus de
“você”, pois consideram que o “tu” sim é um tratamento digno para um
rei, uma forma mais respeitosa e reverente de se dirigir à divindade.
Quero deixar bem claro
que respeito totalmente quem desqualifica o “você” no tratamento de
Deus. Mas permita-me apresentar minhas conclusões.
Para começar, fui
investigar por que razão o uso do “tu” está tão associado na nossa mente
com a forma correta de tratar Deus. E descobri que o motivo não tem
absolutamente nada de bíblico. É uma razão meramente cultural. Acompanhe
o raciocínio:
Portanto, Almeida não
usou o “tu” por qualquer razão bíblica, mas simplesmente porque fazia
parte do seu jeito de falar, da cultura em que estava inserido, do jeito
que era usual na sociedade onde vivia.
Com o passar do tempo,
as traduções Almeida Revista e Corrigida (ARC) e Almeida Revista e
Atualizada (ARA) – as mais adotadas no Brasil até a chegada da Nova
Versão Internacional (NVI) e que até hoje são extremamente utilizadas
nas igrejas – mantiveram o “tu”, uma herança das origens portuguesas da
tradução da Bíblia para nosso idioma e do jeito de falar do tradutor
português de 400 anos atrás.
Logo, em sua raiz, o
“tu” não representa necessariamente nenhuma formalidade, tampouco
respeito. Era simplesmente o jeito de falar do português comum da época
de Almeida.
Entendido isso, vamos
analisar quais são as origens do termo “você”. Para nós, brasileiros do
século 21, essa é uma forma de tratamento que transmite uma certa
informalidade. Isso, junto ao fato de que nas traduções da Bíblia para o
português Jesus sempre foi tratado por “tu” (pela razão que expliquei
acima), acabou criando muita antipatia ao uso do “você” para se dirigir a
Deus. Como estamos viciados em ler na Bíblia o Pai e o Filho serem
tratados por “tu”, parece uma coisa estranha, fora de lugar, nos
dirigirmos à divindade por “você”. Afinal, nunca vimos isso em Bíblia
nenhuma (em português, ressalve-se). Mas precisamos entender o que
significa, de fato, “você”, pois ela não é uma palavra que brotou do
nada.
“Você” é um encurtamento
de “vossa mercê”, um modo extremamente formal de tratamento, usado
desde os tempos remotos em Portugal. “Mercê” significa “graça”,
“misericórdia”. Com o tempo, as pessoas passaram a encurtar esse
respeitoso modo de tratar, que se transformou em “vossemecê”, depois
“vosmecê”, virou “vancê” e, por fim, “você”. Portanto, “você” significa
“vossa graça”. E que significado mais lindo haveria numa forma de
tratamento a Deus do que em algo que ressalta sua graça, sua
misericórdia; aquilo que fez Jesus subir à cruz por cada um de nós?
Graça, a maravilhosa graça!
E veja que interessante:
em sua origem, o “vossa mercê” (“você”) era utilizado somente para se
dirigir a gente a quem se devia tratar com muito respeito, enquanto o
“tu” era usado em ocasiões informais. Atente para esta explicação:
“mercê era o elevado tratamento dado na terceira pessoa aos reis de
Portugal [...] No século 15, quando os soberanos portugueses adotaram o
chamamento de alteza (vossa alteza, e sua alteza) foi o título de mercê
começado a ser dado às principais figuras do Reino, nas principais casas
fora da Família Real, generalizando-se a dado passo como forma de
tratamento adotada pelos fidalgos entre si. Este processo é lento e
gradual, mantendo-se alternativamente o tratamento antigo por vós em
certos setores mais elevados da sociedade portuguesa, paralelamente ao
de vossa mercê. O tu já então era reservado apenas às classes burguesas,
e populares, utilizado na nobreza apenas quando existisse grande grau
de intimidade, geralmente intimidade familiar, e de superiores para
inferiores (pais para filhos, avós para netos, fidalgos para criados e
populares). Os inferiores em dignidade (sobrinhos para tios, criados
para patrões etc.) respondiam ao tu com que eram tratados na terceira
pessoa, ou por vós, ou pelo tratamento correspondente à dignidade
reconhecida à pessoa mais importante durante o diálogo”.
O resumo da ópera é que,
em sua origem e por definição, o “você” era o tratamento dado a reis,
nobres, fidalgos e gente merecedora do mais alto respeito e formalidade.
Já o “tu” era um termo que fazia parte da linguagem do povão, usado com
gente “inferior em dignidade”. Justamente o contrário do que os
opositores a chamar Deus de “tu” compreendem ser o correto e digno, não é
curioso? E isso ocorre porque, no Brasil, o “vossa mercê” começou a
perder o status de linguagem usada para se referir às pessoas mais
importantes quando, no século 16, os reis e nobres europeus passaram a
solicitar ser chamados de “vossa excelência”, o que permanece até hoje
entre nossas autoridades (você já deve ter visto na televisão deputados,
por exemplo, se dirigirem a outros deputados utilizando esse
tratamento). Com isso, o “vossa mercê” (ou “você”) passou a ter um uso
mais amplo.
Constatamos, então, que o
problema todo é uma mera questão de tradução. Almeida escolheu usar o
“tu” porque essa era a palavra que fazia parte de seu dia a dia e sem
nenhuma relação com reverência ou respeito.
Tendo visto isso, agora
precisamos buscar respostas na exegese bíblica, isto é, na análise dos
originais das Escrituras. Será que os textos originais fariam algum tipo
de diferenciação nesse sentido? Vejamos:
Um exemplo seria a
ocasião em que Pedro responde a Jesus quando o Mestre lhe pergunta três
vezes se ele o ama (Jo 21.15-18). A resposta de Pedro é:“Sim, Senhor, tu
sabes que te amo”. O vocábulo original das Escrituras traduzido aqui
por “tu” é su, que, no grego, refere-se à segunda pessoa do singular.
Mas veja que revelador: Jesus, ao conversar com Pedro, usa exatamente a
mesma palavra, su, para se dirigir a ele, como em “Respondeu Jesus: ‘Se
eu quiser que ele permaneça vivo até que eu volte, o que lhe importa?
Siga-me você‘” (Jo 21.22-23). Embora a tradução da NVI use “tu” quando
Pedro se dirige a Jesus e “você” quando Jesus se refere a Pedro, nas
línguas originais não há nenhuma diferença na forma de tratamento: é
exatamente a mesma palavra, sem distinção.
Vamos pegar outros exemplos:
Na ocasião do batismo de
Jesus, ele chega até João Batista, que lhe diz: “Eu preciso ser
batizado por ti, e tu vens a mim?” (Mt 3.14). A palavra original que foi
traduzida aqui por “tu” é, novamente, su. Quando Jesus está diante de
Pilatos, o governador romano lhe pergunta: “Então, você é rei!” (Jo
18.37). Adivinha que termo no original em grego foi traduzido por
“você”? Exato: o mesmo su. E sabe o que Jesus responde? “Tu dizes que
sou rei” (Jo 18.37). A palavra original? Su de novo.
O que percebemos, então,
é que o tempo todo Jesus era tratado por su e tratava os outros por su
(evidentemente estou me referindo ao grego em que foi escrito o Novo
Testamento e não ao aramaico que Jesus e seus discípulos usavam para
conversar entre si ou ao latim que Pilatos falava).
Você poderia argumentar
que Jesus estava sendo tratado assim porque ele não era visto como
divino pelas pessoas, naquele momento e, por isso, não seria considerado
digno de um tratamento mais elevado. Bem, esse argumento desmorona
quando vemos a forma como o próprio Cristo se dirige ao Pai. Quando o
Mestre está no Getsêmani, antes de sua prisão, ele ora e diz ao
Todo-poderoso: “Afasta de mim este cálice; contudo, não seja o que eu
quero, mas sim o que tu queres” (Mc 14.36). Basta olharmos nos originais
e veremos que a forma de tratamento permanece a mesma: su. E o Pai é
tratado dessa forma ainda em outras passagens, como João 17.21, e não só
por Jesus. Vemos, por exemplo, em Atos 4.24, Pedro e João conduzirem
uma oração ao Pai, em que dizem “Ó Soberano, tu fizeste os céus, a
terra, o mar e tudo o que neles há!”. Por que pronome eles o tratam? Su.
A que conclusão podemos
chegar? Constatamos que, na língua original em que foi escrito o Novo
Testamento, o mesmo pronome de tratamento era utilizado quando Jesus se
dirigia a um ser humano, quando um ser humano se dirigia a Jesus, quando
Jesus se dirigia ao Pai ou quando um ser humano se dirigia ao Pai. Não
havia distinção em nenhuma situação.
Logo, será que há algum
mal em eu usar o mesmo pronome para me dirigir a um ser humano, ao Pai,
ao Filho ou ao Espírito Santo? Bem… se na língua original do Novo
Testamento não havia, por que haveria hoje?
Meu irmão, minha irmã,
não chamamos Deus de “tu” por nenhuma razão bíblica, mas por pura
herança cultural do vocábulo escolhido pelo português João Ferreira de
Almeida quando ele passou o texto bíblico para o português 400 anos
atrás. Se ele tivesse escolhido “você”, isso não representaria nenhum
desrespeito. Muito pelo contrário, teria adotado o mesmo tratamento que
era usado para se dirigir a reis, fidalgos e autoridades.
Por tudo isso, fica aqui
minha carinhosa recomendação: se você não se sente bem dirigindo-se a
Deus por “você”, não se dirija. “Tu” é igualmente válido pois, segundo
as línguas originais da Bíblia, não há absolutamente nenhuma diferença.
Mas, por favor, não condene quem chama o Senhor de “você”, porque tem a
mesma validade na tradução e, além disso, historicamente é uma palavra
que se usava para se dirigir aos mais elevados representantes da
sociedade. Tem um belíssimo e digníssimo significado. Não criemos
discórdias entre nós por causa disso.
“Você” significa “vossa
mercê”, que, por sua vez, significa “vossa graça”. Que privilégio é
poder chamar o Abba, o nosso paizinho celestial, de “você” e saber que,
ao nos dirigirmos a ele, estamos ressaltando, no que dizemos, essa
característica tão magnífica e salvadora do amor divino: sua maravilhosa
graça.
Por isso, eu oro: Deus, que tu, você, vossa mercê, vossa misericórdia, vossa graça… em tudo seja glorificado!
Paz a todos vocês que estão em Cristo,
Mauricio
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