Por Josemar Bessa
A essência do pecado é
“Brincar de Deus” – viver não para Deus, mas para si mesmo, vendo Deus
como parte do todo no qual estamos no centro e para qual mesmo Deus se
inclina. O mundo está mergulhado em auto-absorção.
Que imagem é essa senão a
do diabo, já que seu pecado, orgulho auto-exaltado, foi o pecado dele
muita antes de existirmos? Qual é o espírito do culto de nosso geração?
Em torno do que ele está? O grande pecado pregado hoje, espelhando nosso
mundo, não é a falha de em tudo honrar a Deus e lhe ser grato em todas
as circunstâncias da vida, mas a falta de estima por si mesmo.
A geração que “cultua” a
Deus em nossos dias ( cultua a si mesma) achando que a ideia de
auto-humilhação (Lc 9.23, 1Pe 5.6) é um mal supremo, prefere então não
se ofender com a atitude oposta, o que podemos chamar de
Deus-humilhação, ou seja, o rebaixamento de Deus em favor do ego e
estima humana. É de novo e de novo cair da tentação do Éden de “ser como
Deus”(Gn 3.5). Um culto que repudia a auto-humilhação e nossa
indignidade, expressa a mente descrita por Paulo em Romanos 8.7: “o
pendor da carne é inimizade contra Deus” – é o retrato da mente do
homem não regenerado. Esse pendor manifesta o profundo descontentamento
do coração humano com o governo de Deus, ressentimento contra suas
reivindicações e hostilidade para com a Sua Palavra. De tal forma isso
se tornou comum que é só a Palavra ser proclamada que logo vozes se
levantam: “mas isso é muito duro...” – Por causa disso o grito de
libertação de nossos dias – ecoando o mundo, não é mais, “miserável
homem que sou... quem me livrará...” – mas: “Que homem digno eu sou,
quem me ajudará a ver melhor a minha dignidade?”
E onde entram as águas
de Kheled-zâram nisso tudo? Na obra de Tolkien, O Senhor dos Anéis, já
perto do fim da primeira parte – A Sociedade do Anel – depois que a
companhia atravessa as perigosas minas de Moria, com muito custo chegam
do outro lado, tendo “perdido” Gandalf na atravessia, o grupo está
arrasado. Há um grande lamento, Gandalf é o líder... como ficarão sem
ele? Há grande sofrimento e incredulidade, ele era o mais poderoso entre
eles.
No meio desse grande
lamento por Gandalf e ainda temendo por suas vidas, Gimli ( o
representante dos anões na sociedade ), insiste para que Frodo ( o
portador do Anel ) e o inseparável amigo, Sam, se juntem a ele enquanto
olha as águas de Kheled-zâram.
A principal maravilha do
Lago-espelho é que ele reflete apenas as montanhas e as estrelas: “Das
sombras dos próprios corpos inclinados não se via nada” – Ele tira, em
seu reflexo, a pessoa do centro, ela não se vê, ela pode ver tudo sem
ter ela no centro, sem ter ela como perspectiva central da cena. Ela
então pode ver coisas que jamais poderia ver com ela no centro. Coisas
fundamentais que parecem periféricas quando vistas ao redor apenas.
Coisas maiores que nossas alegrias, triunfos ou tragédias aqui. Coisas
que sobreviverão quando nenhum de nós estiver mais neste planeta. ( Ver
coisas que durarão para sempre, como diz Paulo).
Não é essa nossa grande
necessidade? As “águas de Kheled-zâram”, o lago espelho que nos tira
totalmente da perspectiva central nas alegrias, triunfos e tragédias, e
nos faz enxergar coisas eternas?
Sem a libertação da
grande característica do pecado que os Reformadores chamaram de homo
incurvatus in si, estamos presos em nossos egos, em auto-absorção, e
todo culto, e todo nosso cristianismo não passa de farsa, pois ainda
estamos brincando de deus.
Hoje, o primeiro grande
mandamento de nossa geração, o primeiro mandamento que tem moldado nosso
cultos é “amarás a ti mesmo” – explicamos todos os problemas com base
na baixa auto-estima. Não gostamos de nada na Palavra de Deus que
julguemos que provocará isso. Décadas de sermões, livros... inculcando
isso na mente de uma geração fez um estrago enorme. Temos de fato o
culto do Eu. O culto para o mundo, o culto relevante, o culto para o
jovem, o culto para os casamentos, o culto... O foco é o homem e não
Deus, e sequer nos envergonhamos mais de tão grande distorção. Não há
oposição quase nenhuma a tão grande afronta a Deus. Não cultuamos Deus,
cultuamos nossa auto-estima.
A atitude corrente é a
de autodeificação, dela só poderia brotar atos de autodeterminação
contra Deus, Sua Palavra... tendo que o que é eterno e imutável, se
“moldar” ao que é mortal, finito e mutável. Já não conseguimos olhar
mais nada sem ver nossa face no centro da perspectiva. Era exatamente
isso que as águas de “Kheled-zâram”, o lago espelho, fazia, tirava o
homem da perspectiva.
Sem esse “milagre” de
Kheled-zâram, o homem não pode sequer esbarrar nas doutrinas
fundamentais sobre ele, pois, por não estarem indo na direção do culto a
auto-estima, serão descartadas como absurdas, não porque a Bíblia não
as ensina, mas porque ofende a sensibilidade do ego adorado. Por
exemplo, todo homem além do trabalho regenerador de Deus é totalmente
depravado, ou seja, ele não é capaz de nenhum ato ou pensamento sagrado,
santo, aceitável... diante de Deus. Paulo diz que “tudo que não é por
fé é pecado” (Romanos 14.23) – Portanto, tudo que um homem irregenerado
faz é pecado, mesmo que ele dê todos os seus bens para alimentar o pobre
ou o seu corpo para ser queimado (1 Coríntios 13.3) – O motivo
verdadeiro para qualquer ato só pode ser definido devidamente com
referência a honra de Deus, sua santidade, sujeição a Ele, sua honra...
qualquer coisa feita sem essa referência e que não confia tão somente
em sua misericórdia e em nada de bom no homem, não são boas, portanto:
"Não há ninguém que faça o bem nem um sequer" -Romanos 3:12. É óbvio que
isso é uma pedra de tropeço intransponível para o coração irregenerado.
Vida cristã é uma vida
que consiste em seguir a Jesus, e segui-lo está no estremo oposto ao
culto da auto-estima: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si
mesmo, tome a sua cruz e siga-me!” – Hoje vivemos numa geração que quer
seguir a Cristo com muito do mundo e de si mesmo e muito pouco de Cristo
em suas vidas, porque culto a auto-estima e cruz são antagônicos.
Ele diz que primeiro negue-se e só depois siga-me.
Primeiro – Renuncie a si mesmo.
Segundo – Tome a sua cruz.
Terceiro – Siga-me.
Essa é a ordem das
coisas. Mas o Ego está no caminho juntamente com o mundo e suas milhares
de atrações. O culto a auto-estima e o “para mim o viver é Cristo... e
não mais vivo eu mais Cristo vive em mim”, são incompatíveis. O que
Paulo está dizendo é que “para mim o viver é obedecer a Cristo, é servir
a Cristo, é honrar a Cristo...” – é isso que significa. Tomar a cruz
significa obediência, consagração, rendição... uma vida colocada à
disposição de Deus para Sua glória – significa morrer para o Ego.
“Segundo a minha intensa expectação e esperança, de que em nada serei
confundido; antes, com toda confiança, Cristo será, tanto agora como
sempre, engrandecido no meu corpo, seja pela vida, seja pela morte” –
Filipenses 1.20 – Fomos mandados para o mundo para viver com a cruz
estampada em nós, não há outra forma para que de fato a vida de Cristo
seja mostrada em nós:“Trazendo sempre em nosso corpo o morrer de Jesus,
para que a vida de Jesus também seja revelada em nosso corpo” – 2
Coríntios 4.10.
Tudo isso é fábula sem
as “águas de Kheled-zâram”, ou seja, sermos levados a uma visão da vida
em que não estamos mais no centro, podendo ver então tudo que é eterno,
tudo que em nossos triunfos e tragédias aqui, glorifiquem a Deus: “Não
atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as
que se vêem são temporais, e as que se não vêem são eternas.” 2
Coríntios 4:18 – Ele não põe ele mesmo no centro da perspectiva, mas o
plano eterno de Deus – ao não estar centrado em si, tudo que era eterno
tomava um lugar que não podia ser visto antes. Era o que as águas de
Kheled-zâram faziam.
Nós não desanimamos porque os nossos olhos estão fixos no que é invisível e eterno.
Podíamos ver tantos
exemplos na vida de Paulo, mas encerremos com um apenas. Paulo podia ver
as correntes que o prendiam aos soldados romanos dia e noite. Mas seus
olhos não estavam sobre elas e eles. Cada corrente foi forjada por
Cristo e seria usada para Cristo. Se o ego estivesse no centro da
perspectiva, isso seria impensável, mas Paulo pensava: “como posso usar
essa cela de prisão e essas correntes para a glória de Cristo? Como
honrar aqui, nesta situação o Senhor do Céu!”
Ele nunca fez das coisas
deste mundo o alvo do seu olhar, ele podia ver longe, ele não se via no
centro da perspectiva. Se ele fosse adepto do culto da auto-estima de
nossa geração, teria ficado oprimido ali, paralisado por sua própria
mortalidade, obcecado pelos triunfos aparentes dos inimigos, ou
desestabilizado pelo pequeno apoio das igrejas. Mas ao não se ver no
centro da perspectiva, ele pode fixar os olhos sobre o que era
invisível.
Como dissemos antes, a
principal maravilha do Lago-espelho, Kheled-zâram - era que refletia
tudo, a obra das mãos de Deus, sem mostrar a face de quem estava
olhando: “Das sombras dos próprios corpos inclinados não se via nada!” –
Naquele momento de tragédia e dor, onde parecia que tudo iria perecer,
não havia lugar melhor para Frodo e Sam olhar, e foi isso que Gimli os
incentivou fazer.
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