Por Rev. Augustus Nicodemus Lopes
(reprint do post de 2010 – ainda bastante atual)
Para mim resta pouca dúvida de que a
igreja institucional e organizada está hoje no centro de acirradas
discussões em praticamente todos os quartéis da cristandade, e mesmo
fora dela. O surgimento de milhares de denominações evangélicas, o
poderio apostólico de igrejas neopentecostais, a institucionalização e
secularização das denominações históricas, a profissionalização do
ministério pastoral, a busca de diplomas teológicos reconhecidos pelo
estado, a variedade infindável de métodos de crescimento de igrejas, de
sucesso pastoral, os escândalos ocorridos nas igrejas, a falta de
crescimento das igrejas tradicionais, o fracasso das igrejas emergentes –
tudo isto tem levado muitos a se desencantarem com a igreja
institucional e organizada. Alguns simplesmente abandonaram a igreja e a
fé. Mas, outros, querem abandonar apenas a igreja e manter a fé. Querem
ser cristãos, mas sem a igreja.
Muitos destes estão apenas decepcionados
com a igreja institucional e tentam continuar a ser cristãos sem
pertencer ou frequentar nenhuma. Todavia, existem aqueles que, além de
não mais frequentarem a igreja, tomaram esta bandeira e passaram a
defender abertamente o fracasso total da igreja organizada, a
necessidade de um cristianismo sem igreja e a necessidade de sairmos da
igreja para podermos encontrar Deus. Estas idéias vêm sendo veiculadas
através de livros, palestras e da mídia. Viraram um movimento que cresce
a cada dia. São os desigrejados.
Muitos livros recentes têm defendido a desigrejação do cristianismo (*).
Em linhas gerais, os desigrejados defendem os seguintes pontos.
1) Cristo não deixou qualquer forma de igreja organizada e institucional.
2) Já nos primeiros séculos os cristãos
se afastaram dos ensinos de Jesus, organizando-se como uma instituição, a
Igreja, criando estruturas, inventando ofícios para substituir os
carismas, elaborando hierarquias para proteger e defender a própria
instituição, e de tal maneira se organizaram que acabaram deixando Deus
de fora. Com a influência da filosofia grega na teologia e a
oficialização do cristianismo por Constantino, a igreja corrompeu-se
completamente.
3) Apesar da Reforma ter se levantado
contra esta corrupção, os protestantes e evangélicos acabaram caindo nos
mesmíssimos erros, ao criarem denominações organizadas, sistemas
interligados de hierarquia e processos de manutenção do sistema, como a
disciplina e a exclusão dos dissidentes, e ao elaborarem confissões de
fé, catecismos e declarações de fé, que engessaram a mensagem de Jesus e
impediram o livre pensamento teológico.
4) A igreja verdadeira não tem templos,
cultos regulares aos domingos, tesouraria, hierarquia, ofícios, ofertas,
dízimos, clero oficial, confissões de fé, rol de membros, propriedades,
escolas, seminários.
5) De acordo com Jesus, onde estiverem
dois ou três que crêem nele, ali está a igreja, pois Cristo está com
eles, conforme prometeu em Mateus 18. Assim, se dois ou três amigos
cristãos se encontrarem no Frans Café numa sexta a noite para falar
sobre as lições espirituais do filme O Livro de Eli, por exemplo, ali é a
igreja, não sendo necessário absolutamente mais nada do tipo ir à
igreja no domingo ou pertencer a uma igreja organizada.
6) A igreja, como organização humana,
tem falhado e caído em muitos erros, pecados e escândalos, e prestado um
desserviço ao Evangelho. Precisamos sair dela para podermos encontrar a
Deus.
Eu concordo com vários dos pontos
defendidos pelos desigrejados. Infelizmente, eles estão certos quanto ao
fato de que muitos evangélicos confundem a igreja organizada com a
igreja de Cristo e têm lutado com unhas e dentes para defender sua
denominação e sua igreja, mesmo quando estas não representam
genuinamente os valores da Igreja de Cristo. Concordo também que a
igreja de Cristo não precisa de templos construídos e nem de todo o
aparato necessário para sua manutenção. Ela, na verdade, subsistiu de
forma vigorosa nos quatro primeiros séculos se reunindo em casas,
cavernas, vales, campos, e até cemitérios. Os templos cristãos só foram
erigidos após a oficialização do Cristianismo por Constantino, no séc.
IV.
Os desigrejados estão certos ao criticar
os sistemas de defesa criados para perpetuar as estruturas e a
hierarquia das igrejas organizadas, esquecendo-se das pessoas e dando
prioridade à organização. Concordo com eles que não podemos identificar a
igreja com cultos organizados, programações sem fim durante a semana,
cargos e funções como superintendente de Escola Dominical, organizações
internas como uniões de moços, adolescentes, senhoras e homens, e
métodos como células, encontros de casais e de jovens, e por ai vai. E
também estou de acordo com a constatação de que a igreja institucional
tem cometido muitos erros no decorrer de sua longa história.
Dito isto, pergunto se ainda assim está
correto abandonarmos a igreja institucional e seguirmos um cristianismo
em vôo solo. Pergunto ainda se os desigrejados não estão jogando fora o
bebê junto com a água suja da banheira. Ao final, parece que a revolta
deles não é somente contra a institucionalização da igreja, mas contra
qualquer coisa que imponha limites ou restrições à sua maneira de pensar
e de agir. Fico com a impressão que eles querem se livrar da igreja
para poderem ser cristãos do jeito que entendem, acreditarem no que
quiserem – sendo livres pensadores sem conclusões ou convicções
definidas – fazerem o que quiserem, para poderem experimentar de tudo na
vida sem receio de penalizações e correções. Esse tipo de atitude
anti-instituição, anti-disciplina, anti-regras, anti-autoridade,
anti-limites de todo tipo se encaixa perfeitamente na mentalidade
secular e revolucionária de nosso tempo, que entra nas igrejas
travestida de cristianismo.
É verdade que Jesus não deixou uma
igreja institucionalizada aqui neste mundo. Todavia, ele disse algumas
coisas sobre a igreja que levaram seus discípulos a se organizarem em
comunidades ainda no período apostólico e muito antes de Constantino.
1) Jesus disse aos discípulos que sua
igreja seria edificada sobre a declaração de Pedro, que ele era o
Cristo, o Filho do Deus vivo (Mt 16.15-19). A igreja foi fundada sobre
esta pedra, que é a verdade sobre a pessoa de Jesus (cf. 1Pd 2.4-8). O
que se desviar desta verdade – a divindade e exclusividade da pessoa de
Cristo – não é igreja cristã. Não admira que os apóstolos estivessem
prontos a rejeitar os livre-pensadores de sua época, que queriam dar uma
outra interpretação à pessoa e obra de Cristo diferente daquela que
eles receberam do próprio Cristo. As igrejas foram instruídas pelos
apóstolos a rejeitar os livre-pensadores como os gnósticos e
judaizantes, e libertinos desobedientes, como os seguidores de Balaão e
os nicolaítas (cf. 2Jo 10; Rm 16.17; 1Co 5.11; 2Ts 3.6; 3.14; Tt 3.10;
Jd 4; Ap 2.14; 2.6,15). Fica praticamente impossível nos mantermos sobre
a rocha, Cristo, e sobre a tradição dos apóstolos registrada nas
Escrituras, sem sermos igreja, onde somos ensinados, corrigidos,
admoestados, advertidos, confirmados, e onde os que se desviam da
verdade apostólica são rejeitados.
2) A declaração de Jesus acima, que a
sua igreja se ergue sobre a confissão acerca de sua Pessoa, nos mostra a
ligação estreita, orgânica e indissolúvel entre ele e sua igreja. Em
outro lugar, ele ilustrou esta relação com a figura da videira e seus
galhos (João 15). Esta união foi muito bem compreendida pelos seus
discípulos, que a compararam à relação entre a cabeça e o corpo (Ef
1.22-23), a relação marido e mulher (Ef 5.22-33) e entre o edifício e a
pedra sobre o qual ele se assenta (1Pd 2.4-8). Os desigrejados querem
Cristo, mas não querem sua igreja. Querem o noivo, mas rejeitam sua
noiva. Mas, aquilo que Deus ajuntou, não o separe o homem. Não podemos
ter um sem o outro.
3) Jesus instituiu também o que chamamos
de processo disciplinar, quando ensinou aos seus discípulos de que
maneira deveriam proceder no caso de um irmão que caiu em pecado (Mt
18.15-20). Após repetidas advertências em particular, o irmão faltoso,
porém endurecido, deveria ser excluído da “igreja” – pois é, Jesus usou o
termo – e não deveria mais ser tratado como parte dela (Mt 18.17). Os
apóstolos entenderam isto muito bem, pois encontramos em suas cartas
dezenas de advertências às igrejas que eles organizaram para que se
afastassem e excluíssem os que não quisessem se arrepender dos seus
pecados e que não andassem de acordo com a verdade apostólica. Um bom
exemplo disto é a exclusão do “irmão” imoral da igreja de Corinto (1Co
5). Não entendo como isto pode ser feito numa fraternidade informal e
livre que se reúne para bebericar café nas sextas à noite e discutir
assuntos culturais, onde não existe a consciência de pertencemos a um
corpo que se guia conforme as regras estabelecidas por Cristo.
4) Jesus determinou que seus seguidores
fizessem discípulos em todo o mundo, e que os batizassem e ensinassem a
eles tudo o que ele havia mandado (Mt 28.19-20). Os discípulos
entenderam isto muito bem. Eles organizaram os convertidos em igrejas,
os quais eram batizados e instruídos no ensino apostólico. Eles
estabeleceram líderes espirituais sobre estas igrejas, que eram
responsáveis por instruir os convertidos, advertir os faltosos e cuidar
dos necessitados (At 6.1-6; At 14.23). Definiram claramente o perfil
destes líderes e suas funções, que iam desde o governo espiritual das
comunidades até a oração pelos enfermos (1Tm 31-13; Tt 1.5-9; Tg 5.14).
5) Não demorou também para que os
cristãos apostólicos elaborassem as primeiras declarações ou confissões
de fé que encontramos (cf. Rm 10.9; 1Jo 4.15; At 8.36-37; Fp 2.5-11;
etc.), que serviam de base para a catequese e instrução dos novos
convertidos, e para examinarem e rejeitarem os falsos mestres. Veja, por
exemplo, João usando uma destas declarações para repelir
livre-pensadores gnósticos das igrejas da Ásia (2Jo 7-10; 1Jo 4.1-3).
Ainda no período apostólico já encontramos sinais de que as igrejas
haviam se organizado e estruturado, tendo presbíteros, diáconos, mestres
e guias, uma ordem de viúvas e ainda presbitérios (1Tm 3.1; 5.17,19; Tt
1.5; Fp 1.1; 1Tm 3.8,12; 1Tm 5.9; 1Tm 4.14). O exemplo mais antigo que
temos desta organização é a reunião dos apóstolos e presbíteros em
Jerusalém para tratar de um caso de doutrina – a inclusão dos gentios na
igreja e as condições para que houvesse comunhão com os judeus
convertidos (At 15.1-6). A decisão deste que ficou conhecido como o
“concílio de Jerusalém” foi levada para ser obedecida nas demais igrejas
(At 16.4), mostrando que havia desde cedo uma rede hierárquica entre as
igrejas apostólicas, poucos anos depois de Pentecostes e muitos anos
antes de Constantino.
6) Jesus também mandou que seus
discípulos se reunissem regularmente para comer o pão e beber o vinho em
memória dele (Lc 22.14-20). Os apóstolos seguiram a ordem, e reuniam-se
regularmente para celebrar a Ceia (At 2.42; 20.7; 1Co 10.16). Todavia,
dada à natureza da Ceia, cedo introduziram normas para a participação
nela, como fica evidente no caso da igreja de Corinto (1Co 11.23-34).
Não sei direito como os desigrejados celebram a Ceia, mas deve ser
difícil fazer isto sem que estejamos na companhia de irmãos que
partilham da mesma fé e que crêem a mesma coisa sobre o Senhor.
É curioso que a passagem predileta dos
desigrejados – “onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali
estou no meio deles” (Mt 18.20) – foi proferida por Jesus no contexto da
igreja organizada. Estes dois ou três que ele menciona são os dois ou
três que vão tentar ganhar o irmão faltoso e reconduzi-lo à comunhão da
igreja (Mt 18.16). Ou seja, são os dois ou três que estão agindo para
preservar a pureza da igreja como corpo, e não dois ou três que se
separam dos demais e resolvem fazer sua própria igrejinha informal ou
seguir carreira solo como cristãos.
O meu ponto é este: que muito antes do
período pós-apostólico, da intrusão da filosofia grega na teologia da
Igreja e do decreto de Constantino – os três marcos que segundo os
desigrejados são responsáveis pela corrupção da igreja institucional – a
igreja de Cristo já estava organizada, com seus ofícios, hierarquia,
sistema disciplinar, funcionamento regular, credos e confissões. A ponto
de Paulo se referir a ela como “coluna e baluarte da verdade” (1Tm
3.15) e o autor de Hebreus repreender os que deixavam de se congregar
com os demais cristãos (Hb 10.25). O livro de Atos faz diversas menções
das “igrejas”, referindo-se a elas como corpos definidos e organizados
nas cidades (cf. At 15.41; 16.5; veja também Rm 16.4,16; 1Co 7.17;
11.16; 14.33; 16.1; etc. – a relação é muito grande).
No final, fico com a impressão que os
desigrejados, na verdade, não são contra a igreja organizada meramente
porque desejam uma forma mais pura de Cristianismo, mais próxima da
forma original – pois esta forma original já nasceu organizada e
estruturada, nos Evangelhos e no restante do Novo Testamento. Acho que
eles querem mesmo é liberdade para serem cristãos do jeito deles,
acreditar no que quiserem e viver do jeito que acham correto, sem ter
que prestar contas a ninguém. Pertencer a uma igreja organizada,
especialmente àquelas que historicamente são confessionais e que têm
autoridades constituídas, conselhos e concílios, significa submeter
nossas idéias e nossa maneira de viver ao crivo do Evangelho, conforme
entendido pelo Cristianismo histórico. Para muitos, isto é pedir demais.
Eu não tenho ilusões quanto ao estado
atual da igreja. Ela é imperfeita e continuará assim enquanto eu for
membro dela. A teologia Reformada não deixa dúvidas quanto ao estado de
imperfeição, corrupção, falibilidade e miséria em que a igreja militante
se encontra no presente, enquanto aguarda a vinda do Senhor Jesus,
ocasião em que se tornará igreja triunfante. Ao mesmo tempo, ensina que
não podemos ser cristãos sem ela. Que apesar de tudo, precisamos uns dos
outros, precisamos da pregação da Palavra, da disciplina e dos
sacramentos, da comunhão de irmãos e dos cultos regulares.
Cristianismo sem igreja é uma outra
religião, a religião individualista dos livre-pensadores, eternamente em
dúvida, incapazes de levar cativos seus pensamentos à obediência de
Cristo.
Nota:(*) Podemos mencionar entre eles:
George Barna, Revolution (Revolução), 2005; William P. Young, The Shack:
a novel (A Cabana: uma novela), 2007; Brian Sanders, Life After Church
(Vida após a igreja), 2007; Jim Palmer, Divine Nobodies: shedding
religion to find God (Joões-ninguém divinos: deixando a religião para
encontrar a Deus), 2006; Martin Zener,How to Quit Church without
Quitting God (Como deixar a Igreja sem deixar a Deus), 2002; Julia Duin,
Quitting Church: why the faithful are fleeing and what to do about it
(Deixando a Igreja: por que os fiéis estão saindo e o que fazer a
respeito disto), 2008; Frank Viola, Pagan Christianity? Exploring the
roots of our church practices (Cristianismo pagão? Explorando as raízes
das nossas práticas na Igreja), 2007; Paulo Brabo, Bacia das Almas:
Confissões de um ex-dependente de igreja (2009).
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