edição 344 (setembro-outubro) da revista Ultimato é a novidade desse
final de semana aqui no portal. Na capa, A igreja está doente. O
assinante, claro, lê primeiro.
“Prateleira” antecipa aos leitores o
artigo do sociólogo Paul Freston, sobre o que envolveu o disse-me-disse
em torno do deputado federal evangélico Marco Feliciano.
***
Feliciano em perspectiva (histórica, global, contemporânea e futura)
Este artigo não é mais uma denúncia
indignada (muito menos, uma defesa apaixonada) do deputado federal
evangélico Marco Feliciano, que desde março de 2013 preside a Comissão
de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. É uma tentativa
de recuar um pouco, de conseguir uma certa altura, para entender melhor
de onde vem um fenômeno como Feliciano e o que está e não está em jogo
no caso dele.
Perspectiva histórica
Nos últimos cinquenta anos no Brasil, o catolicismo tem sido mais associado à defesa dos direitos humanos do que o protestantismo. Mas, historicamente, o contrário foi verdadeiro. O catolicismo somente incorporou uma preocupação com os direitos humanos a partir do Concílio Vaticano II, nos anos 60. E, mesmo assim, mais em alguns países — como o Brasil — do que em outros — como a Argentina. O chefe da Igreja Católica argentina, durante o brutal regime militar que durou de 1976 a 1983, disse que os supostos desaparecidos estavam todos no exílio dourado em Paris. Porém, o papa João Paulo II, em uma de suas visitas à América Latina, afirmou que “à mensagem do evangelho pertencem todos os problemas dos direitos humanos”.
O protestantismo, por outro lado, constitui a confissão religiosa mais profundamente ligada à evolução de conceitos de direitos humanos, culminando no forte envolvimento protestante na carta fundante das Nações Unidas em 1945 e na Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. Daí a ironia da situação atual no Brasil.
Nos últimos cinquenta anos no Brasil, o catolicismo tem sido mais associado à defesa dos direitos humanos do que o protestantismo. Mas, historicamente, o contrário foi verdadeiro. O catolicismo somente incorporou uma preocupação com os direitos humanos a partir do Concílio Vaticano II, nos anos 60. E, mesmo assim, mais em alguns países — como o Brasil — do que em outros — como a Argentina. O chefe da Igreja Católica argentina, durante o brutal regime militar que durou de 1976 a 1983, disse que os supostos desaparecidos estavam todos no exílio dourado em Paris. Porém, o papa João Paulo II, em uma de suas visitas à América Latina, afirmou que “à mensagem do evangelho pertencem todos os problemas dos direitos humanos”.
O protestantismo, por outro lado, constitui a confissão religiosa mais profundamente ligada à evolução de conceitos de direitos humanos, culminando no forte envolvimento protestante na carta fundante das Nações Unidas em 1945 e na Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. Daí a ironia da situação atual no Brasil.
Perspectiva global
O que está em jogo (ou deveria estar em jogo) na controvérsia em torno de Marco Feliciano? Não é o conceito de Estado laico!
A “teoria da secularização” (quanto mais moderno, mais secular) tem sido fortemente questionada desde os anos 80. Nas últimas décadas, muitos estudiosos abandonaram (pelo menos parcialmente) a teoria da secularização e adotaram a ideia de “modernidades múltiplas” (há várias maneiras de ser moderno, inclusive maneiras religiosas). A religião continua (ou volta a estar) em evidência na vida política de várias regiões do mundo.
Na realidade, a relação da religião com a vida pública ao redor do mundo é extremamente variada, assim como a relação entre religião e Estado. Há uma sofisticação crescente nas análises da relação entre religião e Estado. Várias tipologias foram propostas. Utilizo aqui uma do cientista político turco Ahmet Kuru, que propõe um “continuum”:
A “teoria da secularização” (quanto mais moderno, mais secular) tem sido fortemente questionada desde os anos 80. Nas últimas décadas, muitos estudiosos abandonaram (pelo menos parcialmente) a teoria da secularização e adotaram a ideia de “modernidades múltiplas” (há várias maneiras de ser moderno, inclusive maneiras religiosas). A religião continua (ou volta a estar) em evidência na vida política de várias regiões do mundo.
Na realidade, a relação da religião com a vida pública ao redor do mundo é extremamente variada, assim como a relação entre religião e Estado. Há uma sofisticação crescente nas análises da relação entre religião e Estado. Várias tipologias foram propostas. Utilizo aqui uma do cientista político turco Ahmet Kuru, que propõe um “continuum”:
1. Estados religiosos (Ex.: Irã).
2. Estados com uma religião estabelecida (Ex.: Inglaterra) ou várias religiões estabelecidas ou oficializadas (Ex.: Indonésia).
3. Estados com a “laicidade passiva” ou
“plural”, ou seja, a neutralidade estatal e permissão para a
visibilidade pública da religião (Ex.: Estados Unidos).
4. Estados com a “laicidade agressiva” ou “de combate”, ou seja, que exclui a religião da esfera pública (Ex.: França, Turquia).
5. Estados antirreligiosos (Ex.: Coreia do Norte).
Uma coisa que vemos dessa tipologia é
que a frase “o Estado é laico” significa pouco, pois as últimas três
opções (muito diferentes entre si) poderiam caber nessa frase.
Frequentemente, há um uso ideológico desse lema para deslegitimar uma
proposta adversária.
Não há modelo ideal de relações entre
religião e Estado. O que há é sempre uma evolução a partir de realidades
locais. A força de tradições locais não desaparece com mudanças
meramente legais. Não há, por exemplo, resposta definitiva à pergunta se
a França tem razão em proibir o uso do véu em determinados ambientes. O
véu pode significar coisas diferentes em países diferentes.
Finalmente, os estudiosos têm chamado a
atenção para a diferença entre as relações entre Igreja e Estado e as
relações entre religião e política. Há muitos países que não têm igreja
estabelecida, mas têm uma vida política muito imbuída pelos impulsos e
valores religiosos. Não há nada de antimoderno nem, muito menos, de
antidemocrático nisso.
Perspectiva contemporânea
Em quê o Brasil é singular, em termos
globais? Não é em ter uma forte presença da religião na política, pois
isso acontece em muitos países. Não é no crescimento evangélico, nem no
envolvimento evangélico na política. Porém, o Brasil é singular, sim, no
corporativismo eleitoral evangélico bem-sucedido. Ou seja, a prática de
várias denominações apresentarem candidatos “oficiais” em eleições e em
convencer boa parte dos seus membros a votarem nesses candidatos,
elegendo-os deputados federais, deputados estaduais e vereadores.
A que se deve essa singularidade
brasileira? O que torna possível esse modelo corporativista? A junção de
vários fatores, principalmente o sistema eleitoral (de representação
proporcional com listas abertas), o sistema partidário (fragmentado,
volátil e pouco ideológico) e a organização da mídia no Brasil, que
possibilita uma presença maciça das igrejas através da compra de
horários e da aquisição de canais.
É o corporativismo das candidaturas
“oficiais” que explica sobretudo o hiato em análises acadêmicas, entre
uma avaliação bastante “positiva” da presença evangélica no âmbito micro
(na sociedade civil, sobretudo nas esferas mais desvalidas da
sociedade) e uma avaliação “negativa” no âmbito macro (na política
formal). O modelo de candidatos “oficiais” está ligado, de forma
desproporcional, aos casos de envolvimento de políticos evangélicos em
escândalos políticos.
Até onde vai o corporativismo? Ele tem
sucesso relativamente grande em eleições proporcionais, elegendo
parlamentares em todos os níveis. Porém, é menos eficaz em eleições
majoritárias, porque: a) não consegue eleger seus próprios candidatos,
já que a lógica de uma campanha majoritária é outra; e b) às vezes,
“promete” votos a um candidato de fora da igreja (a prefeito,
governador, presidente), mas nunca consegue uma taxa tão alta de
obediência dos seus fiéis.
Nesse contexto, é pertinente olhar
alguns dados sobre as atitudes políticas dos fiéis pentecostais comuns.
Em 2006, o Pew Forum fez um levantamento sobre pentecostais de dez
países, inclusive do Brasil. Os pentecostais brasileiros afirmam, assim
como a população brasileira em geral, o valor dos processos
democráticos. Quando perguntados se, para resolver os problemas do país,
seria melhor ter um governo mais participativo ou um líder forte, os
pentecostais preferem — mais do que a população brasileira geral — um
governo mais participativo. Somente 25% dos pentecostais queriam a
solução do “governante forte”, comparado com 29% da população geral.
Quanto à importância de haver liberdade
religiosa, inclusive para as outras religiões, os pentecostais (94%
favoráveis) acompanham a tendência geral da população (95%). Quando
perguntados se deveria haver separação entre Igreja e Estado, ou se o
país deveria ser oficialmente um “país cristão”, os pentecostais são
mais a favor da separação (50%) do que da ideia de um “país cristão”
(32%).
O crescimento pentecostal estaria
favorecendo a ideologia do governo mínimo e do neoliberalismo? Os dados
do Pew sugerem que não. Perguntados se o governo deve garantir alimento e
abrigo a todos os cidadãos, os pentecostais (95%) são ainda mais
afirmativos que os brasileiros em geral (93%).
Semelhantemente com a ideia de que os
pentecostais estariam criando ao redor do mundo um ambiente favorável
aos interesses imperiais norte-americanos: perguntados em 2006 se
estavam a favor da “guerra ao terror liderada pelos Estados Unidos”, os
pentecostais brasileiros respondiam menos positivamente do que a
população brasileira em geral.
O levantamento Pew fez duas perguntas
sobre o aborto. Primeiro, sobre a dimensão moral: se o aborto seria, em
alguma circunstância, moralmente justificável — 91% dos pentecostais
brasileiros disseram que não. Porém, sobre a dimensão legislativa, a
resposta foi diferente: somente 56% disseram que o governo deveria
interferir na decisão de uma mulher abortar. Ou seja, 91% consideram o
aborto moralmente inaceitável, mas somente 56% acham que a lei deve
proibir.
Perspectiva futura
Por fim, é pertinente considerar a
possível longevidade do estilo corporativista pentecostal de fazer
política. Começou em 1986, com a eleição para a Constituinte, e tudo
indica que ainda tem muito fôlego. Porém, não vai durar para sempre. Por
uma série de razões, a fase de crescimento rápido das igrejas
evangélicas não deve durar além de mais duas ou três décadas. Depois, a
porcentagem evangélica da população deverá estabilizar-se. Com isso,
quanto às características sociológicas das igrejas evangélicas, tudo
mudará. Haverá uma porcentagem cada vez maior de membros natos e de
conversos mais antigos, e com isso haverá mais demandas por ensinamento e
por outros tipos de líder eclesiástico. Haverá menos triunfalismo e
maiores expectativas no campo da atuação social, e a interação com as
outras religiões mudará radicalmente. E outras maneiras de relacionar-se
com a política passarão a predominar.
Portanto, o tipo de política evangélica
que atualmente predomina não é parte essencial da fé evangélica e nem do
seu segmento pentecostal. Um dia será superado, talvez graças a
mudanças sociológicas mais do que a um processo consciente de
aprendizado. Porém, é bom lembrar as limitações desse modelo
corporativista e da fragilidade de suas bases internas. No entanto, por
alguns anos, o corporativismo marcará fortemente a presença evangélica
na vida pública, e fenômenos como Feliciano terão o seu lugar ao sol,
para a alegria de alguns evangélicos e o desespero de muitos.
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