“Uma
manchete um tanto malandra e o rastro de destruição estava feito. Mais
um capítulo do livro “Cheguei bem a tempo de ver o palco desabar”
Apesar de haver me convertido ao
cristianismo de tradição protestante antes mesmo de começar a escrever
profissionalmente, sempre fui desconfiado de qualquer coisa parecida com
o que é conhecido como segmento “gospel”. Nunca cogitei me alinhar com
tal target nem como profissional muito menos como consumidor e, se você
me permite generalizar, sempre achei que a música evangélica era, no
fundo, uma saída fácil para que artistas sem chance no mundo pop
pudessem dar seus autógrafos, ter seus produtos licenciados e viver seu
sonho de star. O chamado “rock gospel” do início dos anos 1990 não
diminuiu minha antipatia, muito pelo contrário. Música para mim sempre
foi assunto sagrado demais para ser profanada por pseudos.
Mas aconteceu que em 1999 a gravadora
WEA anunciou a contratação do grupo carioca Catedral, embalado naqueles
típicos projetos de marketing vergonhosos vindos de grandes gravadoras: a
multinacional queria oferecer a banda como uma espécie de substituta da
Legião Urbana, especialmente do lado mais espiritualizado e
“conselheiro” da banda de Brasília – dali alguns anos, de fato
contrataria o tecladista da Legião, Carlos Trilha, para produzi-los e
reforçar a conexão. Do lado do quarteto evangélico, o desejo declarado
era romper com o mercado dito gospel e avançar para o mercado dito
secular, passo que se anunciava já havia alguns anos, em músicas cuja
temática religiosa eram mascaradas em letras de amor.
O Catedral havia surgido em 1988 fazendo
um som que em nada lembrava a Legião nem suas matrizes estéticas. Mas
encontrou seu nicho de mercado no mesmo balaio que deu certa (má) fama
ao grupo Cogumelo Plutão, por exemplo, o de pretensos estepes do grupo
de Brasília. Em tempos em que o “serviço de implantação de novos
produtos no mercado” andava de vento em popa entre as gravadoras e as
rádios, a música “Eu quero sol nesse jardim” já tocava em FMs jovens.
Nem a Legião Urbana soaria tão caricaturalmente Legião Urbana quanto
naquela balada de violãozinho com vocal empostado e letra sobre jardins,
luz da manhã e azul do céu. Marcelo Bonfá chamou o grupo de “cópia
paraguaia”; Dado Villa-lobos de “Denorex” (o xampu do slogan “parece,
mas não é”).
Recebi o disco na redação da Usina do
Som e encomendei ao talentoso repórter Ricardo Pieralini que visitasse o
Catedral e descobrisse aonde eles queriam chegar com tudo aquilo.
Lembro de tê-lo advertido de que dinheiro era a menor das tentações, uma
vez que o mercado gospel já era muito mais promissor do que o mercado
secular, realidade que só se acentuou nos anos seguintes. E o repórter
foi em sua missão.
Pieralini voltou dizendo que, sem
compartilhar da minha desconfiança, não havia encontrado nada além do
que encontrava em todo artista que entrevistava: quatro pessoas querendo
atingir um número sempre maior de pessoas. Na verdade, penso hoje eu, o
Catedral tentava fazer na época, com o talento de que dispunham, o que
um número razoável de bandas cristãs brasileiras tenta fazer atualmente:
dar um passo fora do seguro target gospel, dialogar com a sociedade, e
influenciá-la como fizeram Bob Dylan ou o U2. Mas o Catedral não sabia
se explicar e ninguém parecia muito interessado em entendê-los.
Tínhamos, pelo menos um título chamativo – ou apelativo, se você
preferir, para buscar audiência na home do site, àquela altura o maior
sobre música da América Latina, com mais de um milhão de usuários
cadastrados: “A igreja é uma merda”.
No terceiro ou quarto parágrafo do
texto, a um clique de distância, a frase era explicada. A banda dizia,
ou queria dizer, que, artisticamente, manter-se restrito ao circuito
formado por frequentadores de igreja, é um beco sem saída, é restritivo,
uma porcaria, um cocô, uma merda. Foi um título maldoso, não posso
negar, minha máxima culpa. Não mais maldoso do que as maldades que eu já
reservei ao Cidade Negra, é verdade, mas ainda assim pilantra, um tipo
de manchete que só se explica no meio do texto, uma técnica que eu me
recusei a repetir desde então, por mais ingênuo e despreparado que seja o
artista que deixa escapar uma frase como essa.
A diferença entre o Cidade Negra e o
Catedral é que a maldade em direção a estes me levaram a conhecer as
profundezas do farisaísmo gospel. A “notícia” de que o Catedral haveria
“renegado”, “apostatado” e “zombado do corpo de Cristo” grassou com uma
velocidade absurda, sem tempo para contextualizar a frase infeliz.
Aquele foi o conteúdo mais acessado do site até então. Lembro de, no
sábado, dia seguinte à publicação, descendo em direção ao litoral, ter
cruzado com nada menos do que três rádios evangélicas repercutindo a
notícia, nunca consultando a banda, sempre em tom de impiedade e
condenação. A gravadora MK Publicitá, responsável pelo lançamento dos
seis álbuns anteriores do grupo, aproveitou para fazer marketing e
anunciou imediatamente o recolhimento dos álbuns, por causa da “quebra
de compromisso” do grupo com a igreja. Vários pastores e músicos vieram a
público praticar o velho esporte de arvorarem-se santos diante do que
supunham ser o desvio dos outros.
A repercussão foi tanta, e as pressões
da gravadora tamanhas contra um site que, de fato, dependia da simpatia
das companhias, que decidimos tirar a reportagem do ar na segunda-feira,
deixando um rastro impressionante de destruição.
Combinei com Pedro Só, meu diretor, que
eu em pessoa conduziria uma grande reportagem sobre o mercado gospel –
desde aquela época sinônimo de audiência e controvérsia, tudo pelo que
babávamos diariamente. Seria a primeira vez em sete anos de carreira que
eu escreveria algo relacionado a religião.
Meus primeiros entrevistados foram
justamente os músicos do Catedral (o fair-play em me receber
cordialmente, em meio à tormenta em que se meteram, é gesto de nobreza
de espírito que me impressiona até hoje). A partir dali mergulhei no
enxofre: travei uma hora de conversa surreal com a bispa Sônia Hernandes
em que ela começava tentando me convencer de suas boas intenções em
registrar a palavra “gospel” em seu nome e terminava chorando
nervosamente; me impressionei com o pensamento vivo de Yvelise de
Oliveira, dona da MK Publicitá, segundo o qual os desejos mais elevados
de todo artista gospel não eram maiores do que dar autógrafo e tirar
fotos ao lado dos fãs; e fui verdadeiramente iluminado por uma
professora de música numa faculdade de teologia batista, quando ela me
chamou a atenção para o macaqueamento dos modelos americanos entre os
góspeis brasileiros.
Guardo essas entrevistas em cassete até
hoje. Teria rendido uma reportagem histórica, mas a bolha da internet
estourou e os jornalistas com os salários mais altos foram os primeiros a
serem cortados de suas redações. O Catedral lançou outros discos pela
WEA, frequentou o Disk MTV e o Rock Gol, tornou-se ainda mais parecido
com a Legião Urbana, processou a MK Publicitá, ganhou, e entrou na
década de 2010 com um trânsito razoável entre os dois mercados. (O
gospel brasileiro é o único gênero musical em que os próprios artistas
pensam em termos de “mercado” como se fosse um contingente artístico).
Os músicos brasileiros de matriz cristã consideram o evento “Usina do
Som” como um marco para que outros nomes se acovardassem em dar o passo
fora de seu segmento. A Usina do Som, gastando em banda pelo sucesso de
público e sem ideia de como reverter isso em receita, foi diminuindo de
tamanho até fechar em 2005, justamente o ano do advento da web 2.0. E eu
aproveitei o tempo livre para finalmente terminar meu primeiro livro,
Dias de luta: O rock e o Brasil dos anos 80.
Ricardo Alexandre
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