Em
decorrência das recentes manifestações nas ruas do país e nas redes
sociais, alguns cristãos têm sido confrontados por seus pastores e
irmãos quando tomam posição contrária aos Governos federal, estadual e
municipal. O mote usado é o texto no qual o apóstolo Paulo recomendou
“submissão às autoridades”, em Romanos 13.1: “Todos devem sujeitar-se às
autoridades do governo, pois não há autoridade que não venha de Deus, e
as que existem foram ordenadas por ele.”. Quero refletir, ainda que de
maneira incompleta, sobre a questão.
Evidentemente este texto tem sido
interpretado de modos distintos. Até onde vai o limite do Governo, “da
autoridade”? Paulo submeteu-se cegamente a esses poderes?
Veja que dois versículos depois o texto
dá a resposta mais imediata à questão quando diz sob que aspecto a
submissão é requerida: “Porque os governantes não são motivo de temor
para os que fazem o bem, mas sim para os que fazem o mal.” (v. 3) O
papel da autoridade é colocar em vigor a justiça, a Lei e a ordem. O v. 4
diz isso explicitamente: “Porque ela [a autoridade] é serva de Deus
para o teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não é sem razão que
ela traz a espada, pois é serva de Deus e agente de punição de ira
contra quem pratica o mal.”. A “espada” é entendida como a própria pena
de morte por alguns intérpretes, mas outros alegam ser a punição com
maior rigor, enfim.
Mas, e quando o Governo pratica
desmandos, quando é comprovado ilicitudes em sua gestão? E quando há
injustiça por parte das mesmas autoridades? O mesmo Paulo, quando foi
julgado por crime que não cometeu, não se submeteu, antes, apelou a
Cesar (Atos 25.11). Ele desrespeitou seu próprio mandamento? Claro que
não. Houve grande mobilização em função de sua apelação; um destacamento
militar foi colocado à disposição do apóstolo, uma longa viagem teve de
ser feita, ele ficou dois anos sob custódia do Império, tudo isso
porque não aceitou as disposições legais contrárias a verdade a seu
respeito.
Recentemente reli o livro de Ester, o
qual mostra uma trama de morte contra o povo de Deus no Império
Medo-persa. O que fizeram os judeus? Organizaram-se, jejuaram, mas
manifestaram-se perante o rei. Ester enfrentou uma disposição real
correndo risco de morte, uma vez que era proibido aproximar-se do rei
sem a sua expressa autorização. No final, ela alcançou justiça e
livramento para o seu povo.
No Brasil democrático temos uma situação
distinta, pois que a democracia supõe o governo pelo povo e para o povo
(em grego, democracia significa poder do povo). Obviamente o povo não
governará, mas elegerá especialista para tal finalidade. Dentro do
governo democrático, os mecanismos legais (lícitos) são os mecanismos
políticos e as manifestações são direitos do povo (não confundindo com
atos de vandalismo e violência).
Todo cristão é chamado a buscar a
justiça, a igualdade, a paz, os recursos básicos para a sobrevivência do
próximo (estou pensando em moradia, alimentação, saúde, segurança,
educação etc.). E não somente para cristãos, mas para todo o povo. O
próprio Jesus disse que Deus dá sol e chuva para justos e injustos (Mt
5.45), lembrando que “sol e chuva” afetavam diretamente a economia
daquele povo, cuja base cultural eram a agricultura e a pecuária.
William Wilberforce (1759-1833), cristão
e parlamentar britânico, no seu tempo, empreendeu luta árdua por
grandes reformas sociais. Enfrentou incompreensões, calúnias, tentativa
de desmoralização e desmobilização, reação dos poderosos e dos
privilegiados, mas perseverou. Ele disse que “Deus Todo-poderoso colocou
diante de mim dois assuntos: a abolição do comércio de escravos e a
reforma dos costumes na Inglaterra”. Por toda a sua vida ele lutou por
isso em sua carreira política. Se hoje a maioria das nações ocidentais
oficialmente não tem escravidão, é porque ele lutou contra esse modelo. E
não sejamos ingênuos em pensar que não houve reações dentro e fora da
própria igreja. O comércio escravo mobilizava boa parte da economia, e
quando “tocamos” no bolso dos ricos, nada acontece pacificamente.
O mesmo podemos dizer do pastor batista
Martin Luther King Jr. (1929-1968), conhecido ativista político que
mobilizou os Estados Unidos em favor dos direitos dos negros. E nós
brasileiros do século 21 não podemos cometer a ingenuidade de pensar que
Luther King tivesse dito: “Olha, por favor, vamos acabar com a
segregação. Coitado dos negros. Vamos ajudá-los”. Não houve avanço algum
sem que houvesse resistência. E a submissão às autoridades? Eram elas
mesmas que segregavam, movidas por interesses culturais e econômicos – e
até mesmo religiosos por parte de cristãos que usavam versículos
bíblicos para defender suas posições, mas que por outro lado esmagavam
os afrodescendentes.
Que dizer do pastor Dietrich Bonhoeffer,
na Alemanha de Hitler, envolvido na operação Valquíria, que tramou a
morte do ditador? Hoje contamos com alegria a sua história, mas onde
fica a submissão às autoridades na vida de um pastor envolvido num caso
como esses?
É preciso levar a questão também para o
campo da ética, que busca o maior bem para o maior número de pessoas.
Quando temos, hoje, igreja evangélica brasileira, diante de nós a
oportunidade de exercer a cidadania pelos meios legais e lícitos da
manifestação pacífica, seja nas ruas, seja nas redes sociais, não
estamos transgredindo leis e desobedecendo a Bíblia. Antes, estamos
buscando a justiça tal qual Jesus orientou (Mateus 5.6 e outros), um
país melhor com distribuição de renda e oportunidade para todos, e não
um modelo que privilegia os desvios de verbas e outros crimes
comprovadamente demonstrados pelas investigações.
Entendo o temor que certos pastores e
irmãos têm de desobedecer a Deus em função do poder secular, mas não é
exatamente isso o que a história nos mostra em relação à participação do
cristão na vida do seu país. Não podemos exigir que todos se envolvam,
uma vez que nem todos refletem sobre as Escrituras com a mesma
compreensão e nem todos têm vocação para assuntos dessa natureza, que
claramente não é dos mais atraentes. Política não é para todos, como
também o pastorado, o cuidado dos doentes, o envolvimento no ensino,
etc. Mas o esforço e o envolvimento pela justiça e pela paz é. Cada um
fique, portanto, na vocação em que foi chamado.
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